Como um livro infantil virou alvo de protestos de chineses na Holanda

Publicação distribuída em escolas de Amsterdã tem comentário pejorativo sobre turistas chineses. Ativistas acusam xenofobia. Editora e prefeitura pedem desculpas.Um livro infantil holandês causou protestos e indignação na comunidade chinesa na Holanda devido a um trecho criticado por ser discriminatório e por reforçar estereótipos negativos.
O livro My Birthday City, uma publicação comemorativa aos 750 anos da capital Amsterdã, foi distribuído a cerca de 30 mil alunos do ensino fundamental.
A intenção era celebrar a abertura e a diversidade da capital holandesa. No entanto, o livro inclui um jogo em que, a cada casa que o jogador cair, precisa realizar uma ação. Jogadores que caem na casa 42 recebem a instrução: "Ni Hao (olá)! Turistas chineses estão bloqueando a ciclovia. Para evitá-los, volte para a casa 39."
Para membros da comunidade sino-holandesa, o trecho reforça estereótipos raciais e retrata os chineses como uma presença incômoda no espaço público. Críticos também destacaram que os chineses são o único grupo citado de forma negativa no livro.
A ativista Hui-Hui Pan descreveu o conteúdo como "racismo em linguagem infantil, distribuído pela própria cidade".
"O que parece uma piada para muitos é um tapa na cara para mim e para muitos outros asiáticos de Amsterdã. Essa não é uma frase inocente", disse.
Controvérsia gera protestos
A controvérsia levou cerca de 100 membros e apoiadores da comunidade chinesa a se reunirem em frente à prefeitura de Amsterdã no começo do mês para protestar contra o racismo e a xenofobia.
Wei Kaiyu, engenheiro de TI de 35 anos que ajudou a organizar o protesto, disse que a manifestação foi iniciada por imigrantes chineses de primeira geração, como ele próprio.
Ele acrescentou que o vínculo oficial do livro com Amsterdã, o fato de ser voltado ao público infantil e seu alcance entre jovens despertaram reações fortes na comunidade sino-holandesa.
"Se você usa esse formato para ensinar crianças que discriminar chineses, asiáticos ou outros é só uma piada, que tipo de pessoas elas vão se tornar?"
Na Alemanha, um caso similar gerou protestos na comunidade brasileira neste ano, quando um livro didático representava um menino brasileiro que não ia à escola e procurava restos de comida no lixo.
Uso de "Ni Hao" também gera incômodo
O uso da expressão "Ni Hao" (uma forma de dizer "olá", em chinês) causou desconforto. Embora seja uma saudação comum, na Europa ela costuma ser usada de forma pejorativa com pessoas de origem asiática.
"'Ni Hao' virou uma piada ofensiva", disse Hui-Hui Pan. "É uma forma agressiva de abordar alguém."
A frase "volte para a casa 39" também gerou reações. Em 2013, o jurado Gordon Heuckeroth, do programa de música "Holland's Got Talent" (Holanda Tem Talento"), zombou de um candidato chinês perguntando.
"Qual número você vai cantar? O número 39 com arroz?", perguntou ao músico, um estudante de doutorado, em referência aos números de ordens de restaurantes chineses.
Após a apresentação, ele fez outros comentários depreciativos sobre a origem do participante, o que gerou indignação e pedidos por sua demissão.
Redes sociais amplificam o debate
No caso do livro, redes sociais – especialmente o WeChat e o RedNote – tiveram papel central na mobilização da comunidade chinesa.
Huang Qian, professora assistente de estudos de mídia na Universidade de Groningen, disse que o algoritmo do RedNote ajuda o conteúdo a circular fora das bolhas pessoais.
Ela afirmou que o caso também mostra uma mudança no modo como a comunidade chinesa lida com o racismo.
"Hoje, membros da comunidade chinesa na Holanda, especialmente jovens estudantes, estão mais atentos à discriminação. Também têm vocabulário e coragem para discutir o tema na sociedade holandesa."
Atualmente, cerca de 100 mil pessoas de origem chinesa vivem na Holanda, incluindo milhares de estudantes.
Um estudo encomendado pelo governo holandês no ano passado apontou que 1 em cada 2 chineses no país já sofreu discriminação.
Prefeita de Amsterdã reage à repercussão
Com a intensificação do debate em torno do livro My Birthday City, a prefeita de Amsterdã, Femke Halsema, a Associação de Conselhos Escolares e a editora do livro se reuniram com representantes da comunidade chinesa.
Halsema classificou o texto como "infeliz e desconfortável". "Este é um momento em que muitos chineses e outros asiáticos em Amsterdã estão traçando um limite. Muitos enfrentam discriminação há tempos e querem deixar claro que isso é inaceitável. E eu concordo com eles."
Em resposta à DW, por e-mail, um porta-voz da editora disse "lamentar profundamente" o dano causado e afirmou que a escolha do número 39 foi acidental.
A editora anunciou que irá distribuir adesivos para corrigir o trecho nos exemplares já entregues, e espera que o episódio "contribua para aumentar a conscientização sobre a discriminação contra os sino-holandeses."
IstoÉ