Civilização ocidental: Quando o crepúsculo desce

Este é o décimo segundo de catorze artigos sobre a civilização ocidental, abordando, entre outros aspectos, a sua génese, a imagem que tem de si mesma e do seu papel na história, a forma como o resto do mundo a vê e o momento de crise que actualmente atravessa. Os artigos anteriores podem ser lidos aqui:
Civilização ocidental: Uma história de miscigenação Civilização ocidental: Josephine Quinn desafia a visão tradicional da história? Civilização ocidental: O fardo do homem branco Civilização ocidental: A Sociedade Internacional para a Supressão da Selvajaria Civilização ocidental: Um conceito volátil Civilização ocidental: O Grande Cisma de 2025 d.C. Civilização ocidental: Como salvá-la dos seus salvadores? Civilização ocidental: Um ambicioso plano de regressão pt. 1: Poder e dinheiro Civilização ocidental: Um ambicioso plano de regressão pt. 2: Religião Civilização ocidental: Um ambicioso plano de regressão pt. 3: Freios e contrapesos Civilização ocidental: Um ambicioso plano de regressão pt. 4: Liberdades
De magnata dos carros eléctricos a guru da humanidadeDurante os primeiros meses da Administração Trump, o vice-presidente J.D. Vance viu-se relegado para segundo plano pela agitação frenética de Elon Musk. Apesar de não fazer, formalmente, parte da Administração, Musk detinha, na prática, tamanhos poderes como líder oficioso do Departamento de Eficiência Governamental (DoGE, na sigla inglesa), tinha presença tão assídua e conspícua na Casa Branca e em Mar-a-Lago e emitia opiniões tão assertivas sobre a governação do país e do mundo que parecia ser a segunda figura do Estado, ou até mesmo um co-imperador.

Daniel Torok
Casa Branca, 11.02.2025: O imperador, o co-imperador e um dos muitos filhos do co-imperador (a quem o pai, perversamente, deu o nome de X Æ A-Xii)
Entretanto, como é sabido, Musk foi confrontado com quebras nas vendas e nas acções da Tesla, envolveu-se em azedas altercações com outros elementos da Administração Trump e viu a actuação do DoGE suscitar veemente contestação na opinião pública e produzir resultados bem aquém do prometido. Perante o descalabro em várias frentes, Musk anunciou a sua retirada da primeira linha da governação, a fim de concentrar a atenção na gestão do seu império empresarial. A saída de Musk da Administração Trump teve atmosfera aparentemente cordial, com trocas de elogios e a sugestão de que Musk continuaria, agora nos bastidores, a aconselhar a Casa Branca.

Molly Riley
A despedida de Musk da direcção do DoGE, Sala Oval, Casa Branca, 30.06.2025
Porém, rapidamente emergiram discórdias entre o presidente dos EUA e o magnata da Tesla, a pretexto do orçamento federal (a “Big Beautiful Bill”), que rapidamente degeneraram em recriminações mútuas e hostilidade aberta. Foi um desfecho pouco inesperado para uma relação que:
1) Nunca foi sincera, dado que Trump e Musk tinham divergências em assuntos essenciais e a sua aliança foi fundada sobre as areias movediças da conveniência e da hipocrisia. 2) Dificilmente seria duradoura, por as suas personalidades serem demasiado parecidas (ver capítulos “Interlúdio cósmico: Rumo a Marte” e “Interlúdio: Cristo regressa ao Calvário” em Donald Trump: A arte do ludíbrio na era digital), na medida em que ambos possuem egos desmedidos e são, por natureza, narcisistas, conflituosos, acintosos, dominadores, pesporrentes e impulsivos.
Ninguém será capaz de prever a evolução da desavença entre Trump e Musk, pois, se é certo que se a sua troca de farpas se tornou acrimoniosa (culminando na denúncia feita por Musk de que Trump fizera parte do círculo de pedofilia de Jeffrey Epstein), não pode falar-se de uma amizade irremediavelmente desfeita pela simples razão de que entre eles nunca houve amizade. Não é, pois, de excluir que, um destes dias, os interesses destes dois sociopatas voltem a ficar alinhados.
Também não é possível antever se Musk voltará a ser uma figura maior na política partidária, quer no movimento MAGA quer no anunciado America Party, mas, de qualquer modo, Musk não deixará de ser uma figura influente no destino dos EUA e do mundo, por:
1) Ser o homem mais rico do mundo; 2) Ter legiões de admiradores fanáticos, aguerridos e muito activos na Internet; a conta de Musk é a que tem maior número de seguidores na rede social X – 220 milhões – e a que é mais favorecida pelos algoritmos da plataforma;
3) Ter forjado para si mesmo uma aura de “génio visionário”, capaz de conduzir a humanidade para um futuro de prosperidade ilimitada e experiências assombrosas, uma fantasia que capturou a imaginação de milhões de ingénuos e tecnólatras pelo mundo fora.
Se Trump é a personalidade fulcral da actualidade e poderia proclamar, parafraseando a personagem Cody (James Cagney) no final de White heat (1949), “Consegui, papá! Estou no topo do mundo!” (a raiz psicanalítica para o carácter de Donald John Trump está provavelmente no pai, Fred), a verdade é que tem 78 anos e hábitos alimentares pouco saudáveis e os sinais de declínio cognitivo são evidentes para quem quer que tenha paciência para escutar realmente as suas divagantes e incongruentes alocuções. Musk tem menos 25 anos do que Musk, pelo que tem boas probabilidades de lhe suceder como homem mais influente do mundo – isto se, entretanto, o seu formidável império empresarial, cujos alicerces são mais frágeis do que a sua bravata sugere, não implodir aparatosamente.

NASA/Aubrey Gemignani
Lançamento de um foguetão SpaceX Falcon 9, Kennedy Space Center, Florida,14.03.2025
Ao longo de 2022-23, Musk foi dando sinais de aproximação ao ideário da alt-right americana e, a partir de Julho de 2024, quando endossou formalmente a candidatura de Trump, tornou-se, num ápice, num dos mais notórios, veementes e generosos apoiantes do movimento MAGA (o seu amigo Peter Thiel tem uma explicação para esta súbita entrada no palco político, que será explanada no artigo seguinte). A eleição de Trump, em Novembro de 2024, parece ter reforçado o atrevimento e insolência de Musk, que se tornou presença assídua em conferências e eventos do universo MAGA e em entrevistas a podcasters e influencers conotados com a alt-right; além disso, alargou o seu âmbito de intervenção política ao estrangeiro e converteu-se num misto de guru, patrono e “king maker” da extrema-direita mundial (ver capítulo “Interlúdio: Os sólidos princípios morais das pessoas de bem” em Civilização ocidental: Como salvá-la dos seus salvadores?), um posto que Steve Bannon tentara assumir, infrutiferamente, em 2017-19, o que explica, em parte, o intenso rancor de Bannon a Musk (ver capítulo “O Grande Cisma de 2025: Antecedentes” em Civilização ocidental: O Grande Cisma de 2025 d.C.).
Uma das intervenções de Musk com maior repercussão mediática teve lugar a 20.01.2025, num comício na Capitol One Arena, em Washington D.C., destinado a celebrar a tomada de posse de Trump como 47.º presidente dos EUA, que ocorrera na manhã desse mesmo dia na mesma cidade. Após executar uma dança com a graciosidade e fluidez de movimentos que lhe são reconhecidas, Musk, visivelmente eufórico, declarou: “Isto não foi uma vitória qualquer. Isto foi uma bifurcação na estrada da civilização humana. Há eleições que vão e vêm, há eleições que são importantes e outras que não o são, mas esta [casquinar psicopático] conta mesmo e quero agradecer-vos por a terem tornado possível. Obrigado!”. Em seguida, esticou energicamente o braço direito com a palma voltada para baixo, por duas vezes, gesto que teve variadas interpretações e suscitou acesas discussões, mas cuja semelhança com o “saluto romano” é indesmentível, independentemente da motivação de Musk para o gesto (ver capítulo “Saudação romana” em Gestos humanos: De onde vêm, para que servem e como foram retratados ao longo da história). Quem veja as imagens isoladamente, sem qualquer informação sobre o protagonista, poderá admitir que a semelhança terá sido fortuita; porém, é difícil acreditar na inocência do gesto quando este é colocado no contexto das posições políticas que Musk tem vindo a assumir.
[Comício MAGA, Capitol One Arena, em Washington D.C., 20.01.2025]
Seis dias depois desta “prestação”, Musk foi (via vídeo) o convidado-surpresa de um comício de campanha do partido de extrema-direita AfD (Alternative für Deutschland) e dispensou conselhos sobre a relação dos alemães com a história, defendendo que a Alemanha estava “demasiado focada na culpa relativa ao passado [as atrocidades nazis] e que é preciso deixar isso para trás. […] Os filhos não devem ser culpados pelos pecados dos pais ou dos bisavós”, e dispensou este conselho: “É bom ter orgulho na cultura alemã, nos valores alemães, e não deixar que estes se percam numa espécie de multiculturalismo que tudo dilui”.
A intervenção no comício vinha na linha do artigo de opinião de Musk que fora publicado a 28.12.2024 no jornal alemão Die Welt, em que afirmara que “A Alemanha está num ponto crítico, à beira do colapso económico e cultural. […] A AfD é a última centelha de esperança para este país. […] Aos que condenam a AfD como extremista digo: não se deixem enganar pela etiqueta. Olhem para as suas políticas, os seus planos económicos, os seus esforços para preservar a cultura […] Só a AfD é capaz de salvar a Alemanha de se transformar numa sombra de si mesma. Ela é capaz de conduzir o país para um futuro em que a prosperidade económica, a integridade cultural e a inovação tecnológica não são só sonhos, mas a realidade”.
A 28.02.2025, em entrevista ao podcast The Joe Rogan Experience, Elon Musk voltou a recorrer à imagem da “bifurcação na estrada”, ao explicar que a sua entrada em força na disputa eleitoral a favor de Trump resultou de ter percebido que mais quatro anos de governação dos Democratas permitiriam a estes legalizar os imigrantes ilegais nos “swing states”, conceder-lhes nacionalidade americana a troco do seu voto e, assim, conquistar a presidência, a Câmara dos Representantes e o Senado, o que iria permitir aos Democratas legislar de forma a garantir o controlo absoluto do poder nos EUA, para sempre. Musk tem fama de ser uma das mais brilhantes mentes do planeta, mas as teorias conspirativas que cria ou endossa são banais e estúpidas – mesmo que o plano fosse real, como poderiam os Democratas assegurar-se, dado que o voto é secreto, de que os recém-naturalizados iriam mesmo votar Democrata? Na verdade, os imigrantes recém-naturalizados tendem a votar em quem prometa reprimir a imigração, pois a maior ameaça aos seus empregos são as novas vagas de imigrantes.
[“A bifurcação na estrada”: Excerto da entrevista de Musk ao podcast The Joe Rogan Experience, 28.02.2025]
Interlúdio: Do kickboxing à filosofia (sem passar por Sócrates nem por Kant)Vale a pena que nos detenhamos, por momentos, sobre a figura de Joe Rogan (n.1967), pois ela é sintomática de como a trash TV e a Internet ergueram o lapuz comum a modelo e ídolo das massas. Após, entre os 15 e os 22 anos, se ter consagrado a diversas artes marciais, acabou por abandoná-las, em resultado das constantes dores de cabeça resultantes dos golpes recebidos. Conta que, na altura, se interrogou, “Estarei a dar cabo do meu cérebro?” e, quando hoje se ouve/vê Rogan no seu podcast, a perorar, com ar grave, sobre o sentido da vida ou sobre filosofia política, percebe-se que 1) a resposta era sim e que 2) os danos não eram reversíveis. Incentivado pelos colegas das artes marciais e dos ginásios, que lhe achavam imensa piada, enveredou aos 21 anos por uma carreira na stand-up comedy, na declinação mais estulta e brejeira que o género comporta; esta actividade serviu de trampolim para se tornar “actor” (no sentido mais lato que o termo comporta) em comédias televisivas olvidáveis e alcançou finalmente a fama como comentador de eventos de “mixed martial arts” e como apresentador do concurso televisivo Fear Factor (versão americana de um dos muitos produtos de estupidificação maciça criados pela holandesa Endemol).

Joe Rogan (à direita), c. 2002, quando era comentador de “mixed martial arts”
Em 2009, Rogan entendeu que estava na altura de rentabilizar a profunda e vasta sabedoria amealhada com estas experiências de vida, convertendo-se num filósofo – um Ralph Waldo Emerson ou um Henry David Thoreau para a América do século XXI – e deu início ao The Joe Rogan Experience, um podcast que, em parte por Rogan ser uma figura com que o cidadão médio americano se identifica facilmente, se converteu num sucesso extraordinário: tem 19.6 milhões de subscritores e um total acumulado de 6000 milhões de visualizações e é, desde 2020, o podcast com maior audiência no Spotify. O podcast não só tornou Rogan milionário, como fez dele uma das figuras mais influentes do espaço mediático americano – ser-se entrevistado por Joe Rogan, ou, melhor ainda, ser-se endossado por Joe Rogan, pode catapultar uma mediocridade para a ribalta da política americana.
A fraqueza fundamental da civilização ocidentalO homem mais rico do mundo (e o troll mais activo e malévolo do Twitter/X) não precisa de aparecer no The Joe Rogan Experience para dilatar a sua notoriedade, mas a entrevista de Musk a 28.02.2025 certamente contribuiu para consolidar a sua posição no cenário político americano e para lhe conferir credenciais como filósofo político e grande pensador sobre questões civilizacionais. Nesta entrevista, Musk exprimiu a sua admiração por Gad Saad, um professor de marketing canadiano, “que faz posts no X […], um gajo incrível, que fala de, sabes, basicamente, empatia suicida. Tipo, a empatia é tanta que acabas por suicidar-te a ti mesmo [sic]. Anda por aí uma empatia suicida civilizacional. E é, tipo, eu acredito na empatia, tipo, acho que devemos preocupar-nos com os outros, mas precisas de ter empatia pela civilização como um todo e não te deixares ir num suicídio civilizacional […] A fraqueza fundamental da civilização ocidental é a empatia. A exploração da empatia. Estão a explorar uma falha na civilização ocidental, que é a resposta empática. Portanto, acho que, sabes, a empatia é boa, mas precisas de pensar nisso e não ser apenas programado como um robot”. Rogan comenta, “Certo, percebam quando é que a empatia usada como ferramenta”, e Musk corrobora: “Sim, tipo, o problema é a empatia usada como arma”.
[“A empatia suicida”: Excerto da entrevista de Musk ao podcast The Joe Rogan Experience, 28.02.2025]
Não é preciso submeter Elon Musk a uma perícia psicológica para perceber que ele sofre de um sério problema de falta de empatia. Basta estar a par:
1) Do seu historial como empresário e da sua actuação enquanto foi director de facto do DoGE; 2) Da sua postura invariavelmente grosseira e belicosa no Twitter/X (a aquisição do Twitter pelo rei dos trolls do Twitter é uma das grandes ironias do nosso tempo); 3) Da sua misoginia; 4) Da sua obsessão em multiplicar os seus genes: tem, reconhecidamente, 14 filhos de várias mulheres, mas Elizabeth Bruenig, jornalista da revista The Atlantic, sugere que poderão ser cerca de uma centena); 5) Da sua bizarra noção de família e de paternidade (algumas mães dos seus filhos são barrigas-de-aluguer sumptuosamente pagas);
6) Do seu apoio a uma teoria difundida nas redes (ditas) sociais de que a democracia “convencional” deveria ser substituída por um governo de “machos-alfa com elevado teor de testosterona”, que são as “únicas pessoas capazes de pensarem por si mesmas”, excluindo das decisões “as pessoas que são incapazes de defender-se fisicamente (mulheres e homens com baixo teor de testosterona), que processam a informação através de um filtro de consenso que funciona como mecanismo de segurança”, e dando lugar a uma “República” em que tomada de decisão é “democrática, ainda que reservada aos que têm pensamento livre”.
A constante exposição de Musk, quer através de entrevistas quer dos seus posts nas redes sociais, permite-nos também estar a par do seu peculiar entendimento das relações humanas: “A camaradagem é perigosa. Torna mais difícil que sejamos críticos com o trabalho dos outros. Há uma tendência para não empurrarmos um colega para os leões. Ela deve ser evitada”; “É uma terrível fraqueza querermos que gostem de nós, uma terrível fraqueza. Eu não sofro disso”. É tentador pensar no trecho da XXVIII das Cartas a Lucílio, em que Séneca denuncia “aqueles que se bazofiam das suas falhas” e pergunta ao seu interlocutor: “Crês que o homem que apresenta os seus vícios como se fossem virtudes poderá ter qualquer intenção de se emendar?”.

Gravura de Abraham Bosse (seguindo indicações de Hobbes) no frontispício da edição original de Leviathan
Um dos irmãos de Elon Musk, Kimbal, que é empresário e faz parte dos conselhos de administração de várias empresas de Elon, disse numa entrevista: “[Elon] é um génio no que respeita a negócios, mas o seu dom não é a empatia com as pessoas”. O uso da adversativa “mas” nesta frase é discutível: se Elon “é um génio no que respeita a negócios”, é talvez porque “o seu dom não é a empatia”. A empatia é um empecilho no “tanque de tubarões” que é a alta roda dos negócios (e da política), mas, ao contrário do que Musk apregoa, não é uma falha da civilização, nem sequer é exclusiva da civilização ocidental. Na verdade a empatia é a fundação de todas as civilizações, uma vez que foi ela que permitiu superar a “condição natural da humanidade” descrita por Thomas Hobbes no Leviathan (1651), em que a vida era “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta” e se vivia numa “guerra de cada homem contra cada homem […] e cada um não tinha outra defesa que não fosse a sua própria força”.
[Meses depois de confessar o crime, o assassino de Sartawi é finalmente julgado. Mas, numa reviravolta, o terrorista do quarto 507 garante que é inocente. Como vai tudo acabar? “1983: Portugal à Queima-Roupa” é a história do ano em que dois grupos terroristas internacionais atacaram em Portugal. Ouça no site do Observador o sexto e último episódio deste Podcast Plus narrado pela atriz Victoria Guerra, com banda sonora original dos Linda Martini. Também o pode escutar na Apple Podcasts, no Spotify e no YoutubeMusic. E ouça o primeiro episódio aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui, o quarto aqui e o quinto episódio aqui]
De acordo com Hobbes, o homem foi resgatado da sua condição “natural”, de luta pela sobrevivência, sem quartel nem moralidade, pelo estabelecimento de uma comunidade “artificial”, em que cada indivíduo refreia os seus instintos violentos, aliena parte das suas liberdades e abdica da satisfação imediata de alguns dos seus apetites e interesses, em troca da segurança e ordem providenciadas pelo Estado. Parte deste refreamento dos impulsos mais imediatos e primários (“naturais”) em prol do bem da comunidade (“artificial”) resulta de um cálculo frio do interesse próprio, mas outra parte resulta da empatia. O estádio superior do ser humano a que Hobbes se referia era a civilização, termo que não empregou, pois só seria cunhado um século depois, pelo marquês de Mirabeau (a partir do latim “civis” = “cidadão”). É significativo que o primeiro uso conhecido do termo “civilização” na língua inglesa, no Essay on the history of civil society (1767), de Adam Ferguson, tenha ocorrido no contexto de uma argumentação similar à de Hobbes no Leviathan – escreveu Ferguson que “tal como o indivíduo progride da infância para a maturidade, também a espécie progride da incivilidade [rudeness] para a civilização”.
Noutra obra maior de Thomas Hobbes, De cive (Sobre o cidadão, 1642), o filósofo inglês recorreu ao conhecido adágio latino “homo homini lupus”, ou seja, “o homem é o lobo do homem”, a fim de descrever a condição “natural” do homem.

Frontispício de De cive (1642) de Thomas Hobbes
Esta frase tantas vezes repetida – sobretudo pelos pessimistas antropológicos e pelos que pretendem justificar a sua conduta pouco ética ou até criminosa – enferma, segundo o primatólogo holandês Frans de Waal (1948-2024) de “duas falhas essenciais. Primeiro não faz jus aos canídeos, que se contam entre os animais mais gregários e cooperantes do planeta. Mas, pior ainda, nega a natureza inerentemente social da nossa própria espécie” (Primates and philosophers: How morality evolved, 2006). É por o Homo sapiens ser um animal social e, ao mesmo tempo, uma criatura pouco dotada no que respeita a músculos, couraça, garras, dentes e rapidez, que os processos evolutivos nele favoreceram o desenvolvimento da empatia, da cooperação, da entreajuda e do altruísmo (ver Porque é que nos sacrificamos pelos outros? Darwin explica). E todo o processo civilizacional veio reforçar essas quatro componentes do homem enquanto ser social, ao contrário do que postulou Jean-Jacques Rousseau, que via na civilização o agente corruptor da boa natureza inata do ser humano no seu estado “selvagem” (ver capítulo “Queda ou ascensão?” em O que distingue o Homo sapiens das outras bestas?).

“Homo homini lupus” (1901), pelo pintor checo Maximilian Pirner
Uma das fontes mais célebres do adágio “o homem é o lobo do homem” é o comediógrafo romano Plauto (Titus Maccius Plautus, c.254-184 a.C.), que, infelizmente, costuma ser citado de forma truncada – a frase completa de Plauto é bem mais reveladora e profunda: “lupus est homo homini, non homo, quom qualis sit non novit”, ou seja, “lobo é o homem para o outro homem, e não um homem, quando desconhece quem é o outro”. Este desconhecimento do outro está intimamente ligado à falta de empatia, ainda que não coincida, necessariamente, com ela. Os espíritos frios, calculistas e dissimulados até podem ter um forte interesse em obter informações sobre os outros, não para se aproximarem deles ou para os beneficiar, mas para tirar partido das suas fraquezas e idiossincrasias – é neste pressuposto sumamente interesseiro que assenta boa parte da moderna Indústria da Big Data.
Esta está focada em recolher, processar e analisar informação sobre os habitantes do planeta, quer aquela que eles fornecem espontaneamente nas redes (ditas) sociais, quer aquela que decorre, inerentemente, da sua “pegada” na Internet e das suas interacções quotidianas (deliberadas ou colaterais) com dispositivos tecnológicos conectados em rede, de terminais de pagamento multibanco a portagens de auto-estrada, de smartphones a electrodomésticos inteligentes, de câmaras de videovigilância a automóveis de nova geração. O intuito da Indústria da Big Data, que é uma das áreas de negócio mais prósperas e com maior potencial de crescimento, é comercializar informação que permita impingir bens e serviços às massas e influenciar as suas opiniões políticas e o seu voto. Em estados totalitários, como a China, é também um instrumento utilizado pelo Estado na avaliação do “sentimento” popular, no controlo e doutrinação dos cidadãos e na repressão precoce de qualquer veleidade de dissidência.
Elon Musk tem, tal como Mark Zuckerberg e os outros metabarões detentores de redes (ditas) sociais, um interesse adicional em promover a ideia de que a empatia é nefasta: a ausência de empatia é um dos principais ingredientes do “modelo de negócio” destas redes, uma vez que as receitas destas são proporcionais ao número de interacções dos utilizadores e estas são estimuladas por “conteúdos” preconceituosos, sectários, maniqueístas, deliberadamente ofensivos, que reduzem o “outro” (i.e., quem tenha cor de pele, orientação sexual, opinião política ou clube desportivo diferente) a uma caricatura grotesca e desprezível e fazem gala na crueldade (ver capítulo “O triunfo da indignação e o colapso da realidade” em “Somos perfeitos sem ter de fazer nada”: O wokismo e as redes (ditas) sociais e capítulo “Um grande buraco no centro da vida” em A filosofia da Antiguidade tem alguma utilidade no século XXI?). As redes (ditas) sociais, que foram anunciadas como promotoras da empatia e da fraternidade universal acabaram, graças ao conúbio entre ganância, manipulação de algoritmos e os piores instintos do ser humano, por se tornarem agentes da zizânia universal e do regresso do espírito humano ao estado tribal – e também do consumismo, do exibicionismo, da frivolidade e do narcisismo, inclinações em tudo contrárias à empatia.
Interlúdio: A musa dos tecnoplutocratas e da alt-rightA maioria dos tecnoplutocratas não é muito dada a ler clássicos como Hobbes e Plauto, pois as suas preferências literárias – quando existem – vão para a high fantasy, para ficção científica e para Ayn Rand (1905-1982). Rand, que nasceu em São Petersburgo, numa família judia russa, com o nome Alina Zinovyevna Rosenbaum, e se radicou em 1926 nos EUA, desfrutou de grande sucesso como romancista antes de, a partir do início da década de 1960, se consagrar à promoção do seu sistema filosófico, a que deu o nome de objectivismo, através de ensaios que foi publicando em livro ou que foram surgindo nas publicações periódicas por si dirigidas – The Objectivist Newsletter (1962-66), The Objectivist (1966-71) e The Ayn Rand Letter(1971-76). Os seus livros venderam, até hoje, cerca de 37 milhões de exemplares; alguns deles foram adaptados ao teatro pela própria Rand e foi também ela quem converteu o romance The fountainhead (1943) num argumento de cinema, que foi filmado por King Vidor, teve Gary Cooper e Patricia Neal nos papéis principais, estreou em 1949 e que, em Portugal, recebeu o título Vontade indómita (ver A revolta de Atlas é tão perigoso como Mein Kampf?).

Gary Cooper, no papel de Howard Roark, em The Fountainhead/Vontade indómita (1949)

Ayn Rand, em 1943
Os dois romances mais famosos de Rand, The fountainhead e Atlas shrugged (1957, A revolta de Atlas), que, em muitos trechos, são apenas um veículo para a exposição do credo objectivista, têm sido mencionados como obras favoritas por gente como Steve Jobs (Apple), Travis Kalanick (Uber), Evan Spiegel (Snapchat), Peter Thiel (Paypal, Palantir e um longo etc.) e Elon Musk e compreende-se que os romances de Rand, que desprezam a empatia, valorizam o egoísmo e proporcionam uma justificação moral para estas escolhas, sejam apelativos para criaturas com este perfil. Várias figuras da ala direita do Partido Republicano também manifestaram apreço por Rand e até Trump declarou que The fountainhead é um dos seus livros de eleição – é duvidoso que o tenha lido (750 páginas estão muito para lá do seu limiar de atenção), mas é natural que se identifique com o seu protagonista, Howard Roark, um homem de guedelha cor-de-laranja que concebe arranha-céus.
O objectivismo assenta “no conceito do homem como ser heróico, tendo a sua própria felicidade como propósito moral da sua vida, a realização produtiva como a mais nobre das empresas, e a razão como único absoluto” (Rand). Congruentemente, o objectivismo rejeita o altruísmo, uma vez que este impõe que se coloque o bem dos outros à frente do nosso próprio bem e vê a empatia como problemática, uma vez que, quando em excesso, poderá empurrar-nos para o “pecado” do altruísmo. Algumas das traves-mestras do objectivismo estão patentes num discurso feito por John Galt, o protagonista de Atlas shrugged, num momento crucial do romance: “Durante séculos, a batalha da moralidade foi travada entre os que defendem que a tua vida pertence a Deus e os que defendem que ela pertence aos teus vizinhos – entre os que pregam que o bem é sacrificarmo-nos por fantasmagorias no Céu e os que pregam que o bem é sacrificarmo-nos pelos incompetentes na Terra. E não apareceu ninguém que dissesse que a tua vida te pertence e que o bem é vivê-la”.
Em vez da empatia e do altruísmo, Rand favorece o “egoísmo racional” (rational selfishness), que defende que uma acção é racional somente quando maximiza o interesse próprio de quem a pratica – e é precisamente quando cada um age desta forma autocentrada que produz também maior benefício para os outros membros da sociedade. O “egoísmo racional” é um dos conceitos centrais do objectivismo e Rand dedicou-lhe vários ensaios, que foram compilados em The virtue of selfishness (1964, A virtude do egoísmo).
[Ayn Rand explana os fundamentos do objectivismo, numa entrevista a Mike Wallace, em 1959]
Em Odeio a Internet (2016, I hate the Internet), Jarett Kobek providencia esta descrição lapidar dos livros de Ayn Rand: eles “dizem às pessoas muito ricas que elas são boas e que a sua demanda de riquezas é moral e justa. Muitas destas pessoas chegam a CEOs e a altos cargos na administração americana”. Odeio a Internet foi publicado originalmente em Fevereiro de 2016 e é pouco provável que Kobek tivesse previsto que, nove meses depois, Donald Trump seria eleito presidente e que isto faria com que muitos “altos cargos na administração americana” fossem, efectivamente, confiados a fãs de Rand, o que levou Jonathan Friedland a observar, no The Guardian de 10.04.2017, que Rand há muito que desfrutava de grande apreço entre a direita americana, mas que esta era a primeira vez que tantos dos seus devotos ocupavam posições de poder.
Cinco anos antes, no mesmo jornal, num artigo intitulado “How Ayn Rand became the new right’s version of Marx” (05.03.2012), George Monbiot, após descrever o ideário de Rand como “uma fantasia misantrópica de crueldade, vingança e ganância” e “a mais repulsiva filosofia que o mundo do pós-guerra gerou”, alertava para a crescente popularidade de Rand entre os multimilionários e entre o Tea Party (o grande movimento agregador da extrema-direita americana antes da aparição de Trump). Escreve Monbiot que “não é nada difícil perceber por que é Rand tão apelativa para os multimilionários. Ela proporciona-lhes algo que é crucial para qualquer movimento político de sucesso: um sentido de vitimização. Ela diz-lhes que eles estão a ser parasitados pelos pobres ingratos e oprimidos por governos intrometidos e controladores”.
Lisa Duggan, professora de Análise Social e Cultural na New York University e autora de Mean girl: Ayn Rand and the culture of greed (2019), afina pelo mesmo diapasão quando afirma que “Rand exalta o génio empreendedor individual, a quem deve ser deixada via livre para concretizar os seus planos visionários, sem interferência da regulação governamental, das organizações laborais e de criaturas socialmente inferiores”. Ao defender o poder supremo do mercado e a redução do Estado à expressão mínima, Rand pode ser vista, segundo Duggan, como precursora do anarco-capitalismo, que começou a ganhar forma no início da década de 1970 e cujo representante com maior notoriedade no nosso tempo é o presidente argentino Javier Milei, que, aliás, se reclama publicamente dessa “filosofia”.
Um símbolo maior do desprezo da extrema-direita populista do nosso tempo pela empatia é a moto-serra brandida nos comícios pelo então candidato Javier Milei. Ela entrou em cena como símbolo da promessa eleitoral de Milei de “cortar as gorduras” de um aparelho de Estado redundante, flácido, ineficiente e sobrecarregado com funcionários ociosos, incompetentes e parasitários – o que seria um propósito meritório –, mas acabou por revelar-se uma arma de ataque aos próprios conceitos de Estado social e de justiça social, que Milei considera serem “uma aberração” (ver capítulo “O representante do Maligno na Terra vs. O Ungido de Deus” em Civilização ocidental: Um ambicioso plano de regressão pt. 2: Religião e capítulo “Exterminar o monstro” em Civilização ocidental: Um ambicioso plano de regressão pt. 3: Freios e contrapesos).

Gage Skidmore
Javier Milei com uma réplica da moto-serra que usou na sua campanha eleitoral, momentos antes de a entregar a Elon Musk, na Conservative Political Action Conference 2025, em National Harbor, Maryland
O “emagrecimento do Estado” é, em muitos países ocidentais, uma tarefa necessária, imperativa até, mas requer sensibilidade dos decisores e instrumentos mais precisos e de controlo mais fino do que uma moto-serra. Porém, o “método Milei” não só foi posto em prática na Argentina, como foi adoptado pela Administração Trump 2.0, com a criação do Departamento de Eficiência Governamental (DoGE), que Milei reclama ter-se inspirado no seu Ministério da Desregulação e da Transformação do Estado, liderado pelo economista Federico Sturzenegger e que tem colhido a aprovação de partidos ultraliberais pelo mundo fora (Portugal incluído – ver Liberais mostram fascínio crescente pelo “afuera!” de Javier Milei).
A escolha de Elon Musk para chefiar o DoGE sugere que Trump partilha do entendimento, dominante na extrema-direita libertária, de que o Estado pode e deve ser gerido como uma empresa. Sintomaticamente, Todd Lyons, o director do Immigration and Customs Enforcement (ICE), declarou, em Abril passado, referindo-se ao programa de deportações de imigrantes em situação irregular, que “temos de ser melhores a funcionar como uma empresa, uma Amazon Prime mas com seres humanos”, sonhando, quiçá, com uma linha de embalamento automatizada que acondicionasse pessoas em caixas de cartão e as expedisse para El Salvador e para o México. Trump sempre destacou, nas suas campanhas eleitorais, que uma das qualidades (entre as muitas com que foi prendado) que faziam dele uma escolha imbatível como presidente dos EUA era a sua experiência de décadas como mestre da arte da negociação – saber que destilou e verteu no best-seller The art of the deal, de que Trump e os seus cortesãos falam como se fossem as Sagradas Escrituras, e em mais uma vintena de livros similares.

Molly Riley
Javier Milei e Donald Trump, na CPAC 2025
Trump, que gostaria de ser capaz de produzir frases sonoras e lapidares, dignas de serem compiladas num imponente fólio de capa dourada com o seu nome gravado em relevo, mas é absolutamente ignorante da História e raciocina como uma barata voa, disse do DoGE ser “o Manhattan Project do nosso tempo”. Ora o Manhattan Project – o programa de investigação e desenvolvimento da bomba nuclear, que decorreu entre 1942 e 1946 e custou 2000 milhões de dólares (35.000 milhões, quando corrigidos da inflação) – não só não tem qualquer semelhança, no propósito, na natureza e no modo de funcionamento, com o DoGE, como é um exemplo paradigmático de um projecto que só um Estado com elevado grau de centralização seria capaz de conceber, financiar, concretizar e manter no mais rigoroso segredo. Para a dissemelhança ser mais completa, o Manhattan Project, embora liderado pelos EUA, foi uma parceria com o Reino Unido e o Canadá, ideia que seria pouco simpática a um presidente que se tem esforçado por cortar laços com os aliados e tornar os EUA auto-suficientes em todos os domínios. Finalmente, enquanto o Projecto Manhattan foi coroado de sucesso, os resultados do DoGE ficaram muito aquém do anunciado (ver capítulo “Um monstro difícil de matar” em Civilização ocidental: Um ambicioso plano de regressão pt. 3: Freios e contrapesos).
Milei, o caudilho-palhaço adorado pela extrema-direita libertária, ficou tão encantado por as suas ideias estarem a ser emuladas pela Administração Trump e, mais concretamente, por Elon Musk – que Milei enalteceu como “o Thomas Edison do século XXI, ou digamos, o Michelangelo, o Leonardo da Vinci” – que, na Conservative Political Action Conference (CPAC) de 2025 presenteou o (então) mentor do DoGE com a “moto-serra da burocracia”, uma réplica da moto-serra que Milei usou como adereço na campanha eleitoral argentina de 2023. A única diferença é que a moto-serra de Milei – hoje em exibição no gabinete presidencial na Casa Rosa, em Buenos Aires – tem gravados os dizeres “Las fuerzas del cielo”, enquanto a de Musk ostenta o lema com que Milei costuma terminar as suas alocuções: “Viva la libertad, carajo!”. A oferta foi entregue, em palco, ao som – muito apropriado – da canção “Bad to the bone” (“Ruim até à medula”), de George Thorogood & The Destroyers.

Gage Skidmore
Musk com a moto-serra oferecida por Milei, na CPAC 2025, em National Harbor, Maryland
A “moto-serra da burocracia” não é apenas um símbolo da campanha para reduzir o Estado à expressão mínima – é também uma metáfora do corte que a moderna extrema-direita populista pretende fazer com as últimas décadas (ou até séculos) da civilização ocidental. Para esta mundividência, não só qualquer interferência do Estado no livre funcionamento dos mercados e na benévola e lucidíssima actuação dos empreendedores é fonte de distorções e desequilíbrios, como o próprio Estado – ou o que dele restar, após os necessários desbastes, deve, desejavelmente, ser gerido como uma empresa.
No quinto livro de A República, escrita por volta de 375 a.C., Platão introduziu o conceito do Rei-Filósofo, que justifica assim, mediante palavras colocadas na boca de Sócrates, seu mestre: “Enquanto os filósofos não se tornarem reis, ou aqueles a quem hoje designamos como reis e príncipes não se tornarem filósofos – na genuína e completa acepção da palavra – e enquanto política e filosofia não se congraçarem na mesma mente […], não conhecerão trégua os males que afligem os Estados”. Vinte e quatro séculos depois, a filosofia está longe de gozar do prestígio de que gozava no tempo de Platão e multiplicam-se as vozes dos que propõem que, face à complexidade e rapidez de mudança do mundo moderno, do que as nações precisam é de um Rei-CEO
A ideia, popular entre os admiradores de Milton Friedman, de que o Estado deve ser gerido em moldes empresariais funda-se sobre vários equívocos. O primeiro deles é não perceber que o propósito fundamental do Estado e de uma empresa são muito diferentes: o da segunda é maximizar a distribuição de dividendos aos seus accionistas, e, como estes são anónimos, transitórios e volúveis, os decisores podem ser pressionados a determinar que, a fim de gerar remunerações generosas a curto prazo, se sacrifiquem o desempenho no longo prazo, a estabilidade e reputação da empresa, assim como o bem-estar e satisfação dos trabalhadores, a saúde e qualidade de vida dos consumidores, os parâmetros de qualidade ambiental e a preservação dos sistemas biofísicos da Terra. O jornalista económico Mani Basharzad apontou outros equívocos a esta teoria no artigo Porque falhou o DoGE?, apoiando-se em Bureaucracy (1944), do economista austro-americano Ludwig von Mises, e concluiu que “a eficiência no Estado não pode ser imposta utilizando as métricas do mercado”.
Mas mesmo que a lógica empresarial tivesse, em abstracto, alguma aplicação à natureza e responsabilidades do Estado, que empresas concretas poderiam funcionar como modelo de actuação? As tabaqueiras que, embora estando plenamente conscientes dos efeitos nocivos do tabagismo, os ocultaram deliberadamente, durante meio século, dos fumadores, dos cidadãos em geral e das autoridades de saúde e promoveram campanhas exaltando os supostos benefícios dos cigarros?

Um dos cerca de 50 anúncios diferentes da campanha “Há mais médicos a fumar Camels do que qualquer outra marca” que a tabaqueira R.J. Reynolds (detentora da Camel, Lucky Strike, Pall Mall, Kent, Viceroy, Old Gold e dezenas de outras marcas) fez correr entre 1940 e 1949
As grandes empresas de combustíveis fósseis que há décadas financiam estudos “científicos” que demonstram que as alterações climáticas não são reais ou que, sendo-o, não têm a queima de combustíveis fósseis como causa relevante? A Volkswagen e outros fabricantes de automóveis (maioritariamente alemães) que adulteraram o funcionamento dos seus veículos a diesel para simularem, em teste, emissões poluentes inferiores às reais? A Apple, que tem sido objecto de uma sucessão de processos judiciais e multas pela parte das entidades reguladoras por tentar criar situações de monopólio e fixar preços e por adoptar sistematicamente outros comportamentos anticompetitivos? A Google, que tem abusado da sua posição dominante entre os motores de busca para favorecer os seus próprios serviços? A Purdue Pharma, que, através de “técnicas de marketing agressivas”, “persuadiu” muitos médicos a prescrever liberalmente o analgésico OxyContin, que o fabricante sabia ser fortemente viciante, o que resultou numa epidemia de toxicodependência de opióides nos EUA, que se estima ter sido responsável por meio milhão de mortes entre 1999 e 2020? A corretora de criptomoedas FTX, de Sam Bankman-Fried, um nerd com talento para a matemática e diplomado pelo MIT que chegou a ser a 41.ª pessoa mais rica dos EUA e agora cumpre pena de 25 anos de prisão e está obrigado a devolver 11.000 milhões de dólares aos lesados da FTX? A Enron, que chegou a ser a maior empresa mundial de comercialização de energia e que, em 2000, declarou receitas de 101.000 milhões de dólares, mas cujos optimistas relatórios financeiros eram, afinal, fruto de contabilidade criativa, o que levou a que, em Dezembro de 2001, entrasse em insolvência? A Arthur Andersen, que auditava as contas da Enron e não deu pela falcatrua e acabou por ser extinta na voragem do colapso da sua cliente?

Evolução do valor das acções da Enron entre 23.08.2000 e 11.01.2002
O Grupo Espírito Santo? A KPMG, que auditava as contas do Grupo Espírito Santo? O Banco Privado Português? O Banco Português de Negócios?
A Trump Entertainment Resorts, que foi três vezes à falência e cujos aparatosos hotéis e casinos acabaram por ser todos encerrados, vendidos e (nalguns casos) implodidos? A Trump University, uma pseudo-universidade especializada em empreendedorismo, gestão de activos, investimento imobiliário e temas similares, e que, por nunca ter recebido acreditação, acabou por ser encerrada em 2011 e teve de ressarcir os estudantes que defraudou? A Trump Shuttle, uma companhia de aviação que deu prejuízo em todos os anos em que esteve activa, entre 1989 e 1992? A GoTrump.com, um website de viagens que foi inaugurado em 2006, com a garantia de ser “um tremendo sucesso”, e foi extinto em 2007? A Trump Steaks, uma marca de carnes lançada em Maio de 2007 e descontinuada dois meses depois, após vendas decepcionantes?

Anúncio à Trump Steaks, 2007
A reivindicação da extrema-direita populista de ser a única e legítima representante dos valores da civilização ocidental e de estar envolvida numa luta titânica com as forças de esquerda que pretendem fazer ruir aquela, não é nova – há cerca de um século, já era assim que a extrema-direita europeia se auto-representava.
O que é novo em 2025 é que:
1) A “ameaça vermelha” é hoje uma sombra do que foi nas décadas de 1920-30. No sul da Europa, na década de 1970, os partidos comunistas ainda eram forças politicamente relevantes e alguns atingiram então o seu apogeu: o italiano obteve o seu melhor resultado nas eleições parlamentares de 1976, com 34% dos votos, e em 1987 ainda chegou aos 27%; o francês conseguiu 21% dos votos nas eleições para a Assembleia Nacional de 1973 e 1978; o espanhol obteve 9 e 11% nas eleições parlamentares de 1977 e 1979, respectivamente; o português estreou-se em eleições parlamentares livres em 1975, com 12%, e atingiu o seu melhor resultado em 1979, com 19%. No caso do PCI, do PCF e do PCE (mas não do PCP), os bons resultados podem ser explicados por terem enveredado pelo “eurocomunismo”, caracterizado pela autonomização em relação a Moscovo e pela aceitação de alguns aspectos da “democracia burguesa”.
Esta manifestação de pujança foi breve e deu lugar a um declínio inexorável ao longo da década de 1980, que se acentuou com a queda do Muro de Berlim (1989) e o apagar do “farol do mundo” que era a URSS, formalmente extinta em 1991, mas que começara a abrir fissuras e a afastar-se do comunismo no final do mandato de Mikhail Gorbachev. O PCI foi dissolvido em 1991 e nas eleições parlamentares do século XXI os resultados dos partidos comunistas europeus sobreviventes têm sido residuais – apesar de, nas eleições legislativas de 2025, o PCP ter caído para 3%, acaba por ser o partido comunista europeu que resistiu menos mal.
Os restantes partidos de extrema-esquerda, sejam eles trotskistas, maoístas ou de qualquer outra dissidência do marxismo-leninismo, raramente alcançaram popularidade significativa na Europa, sendo os 10% de votos (e 19 deputados) do Bloco de Esquerda nas eleições legislativas de 2025 um invulgar caso de sucesso. Nas eleições de 2025, o BE ficou reduzido a um deputado (2% dos votos); em Espanha, a coligação de partidos e micropartidos de extrema-esquerda que dá pelo nome de Sumar, obteve 12% dos votos nas eleições parlamentares de 2023, mas as sondagens dão-lhe hoje apenas 7-8%. A excepção neste cenário de recuo generalizado da extrema-esquerda é a França, onde as eleições de 2024 para a Assembleia Nacional deram 28% à Nouveau Front Populaire, mas é preciso ter em conta que esta ampla coligação vai do centro-esquerda (Partido Socialista) à extrema-esquerda (La France Insoumise).
2) As organizações de extrema-esquerda que advogavam o recurso à violência e ao terrorismo para derrubar a “democracia burguesa” e que instauraram um clima sombrio na Europa da década de 1970 dissolveram-se ou foram suprimidas pelas autoridades. Os partidos de extrema-esquerda remanescentes aceitaram as regras do jogo democrático e removeram do programa e do discurso público as suas exigências mais descabeladas, as suas propostas mais disruptivas e as suas acusações mais infames e incendiárias.
3) A extrema-direita, que, durante muitas décadas, foi irrelevante no cenário político dos países ocidentais, instalou-se, mediante eleições justas e livres, no comando do país mais poderoso do mundo, que, durante o século XX, foi visto no Ocidente como um baluarte da resistência ao totalitarismo (excepto pela extrema-esquerda, que costuma ver nos EUA a potência totalitária n.º 1).
4) A extrema-direita conta hoje com a aquiescência ou até a cumplicidade activa de multimilionários que gerem impérios empresariais de dimensão planetária, boa parte deles pertencente à classe dos tecnoplutocratas, ou seja, a “aristocracia politécnica” contra a qual Georges Bernanos, prescientemente, nos advertiu há quase um século, em La grande peur des bien-pensants (ver capítulo “As redes sociais não são domesticáveis” em História para amanhã pt.2: Migrações, sustentabilidade e redes sociais e capítulos “IA: Em frente, a todo o vapor!” e “Rendidos à aristocracia politécnica” em História para amanhã pt.3: A inteligência artificial é uma ameaça?).
5) A opinião pública está cada vez mais obnubilada e subjugada pelas quimeras, falácias e fantasmagorias geradas por sistemas de comunicação e entretenimento digital omnipresentes, multiformes e imersivos, cujo poder de manipulação e sedução faz parecer ingénua, rudimentar e risível a (então sofisticada e inovadora) propaganda da extrema-direita nas décadas de 1920-40.
6) A extrema-direita tem sido mais activa e eficaz do que as restantes forças políticas no recurso aos sistemas de comunicação e entretenimento digital, quiçá por estes serem, inerentemente, mais favoráveis ao tom e conteúdo do discurso da extrema-direita. Em pouco tempo, criou-se uma rede planetária, fortemente interconectada e facilmente excitável, envolvendo actores de diversas naturezas e propósitos, que recorrem às redes sociais, ao YouTube, a podcasts, a blogs e a fóruns da Internet para a promoção de ideias de extrema-direita. Apesar de a maior parte deste grupos defender um ideário nacionalista (ou até ultranacionalista), a rede assumiu um espírito “internacionalista”, com os slogans, memes, teorias conspirativas e argumentos originados num país a serem rapidamente adoptados pelo mundo fora. Dominique Albertini e David Doucet, jornalistas franceses especializados na extrema-direita, cunharam o termo “fachosfera” para designar esta rede (La Fachosphére: Comment l’extrême droite remporte la bataille du net, 2016). O termo é sonante e tem ganho curso (nomeadamente na esquerda espanhola), mas é falacioso, pois assimila toda a extrema-direita ao fascismo (um erro grave mas comum). Curiosamente, é muito pouco usado o termo simétrico “wokesfera”, ainda que a “fachosfera” possa ser vista como uma reacção a esta. Há que reconhecer que a “wokesfera”, após um período inicial de florescimento, em que mostrou alguma eficácia no “cancelamento” de quem não se enquadrava nos padrões de correcção política, perdeu pujança e influência, desacreditada pelos excessos que cometeu, pelas reivindicações descabeladas que fez e pelo sectarismo e pela propensão totalitária que revelou.
7) Os sistemas de anestesiamento, alienação e subjugação psicológica das massas estão sob o controlo dos tecnoplutocratas, que tentam, por todos os meios, furtar-se à regulação pelos governos, ou desafiando estes nos tribunais, ou torneando os regulamentos, ou recorrendo ao lobbying para fomentar a desregulação, ou usando o seu poderio económico para obter dos governos tratamento preferencial.

O nazismo foi pioneiro no uso da tecnologia para a difusão da sua propaganda: “Toda a Alemanha ouve o Führer através do Rádio do Povo [Volksempfänger]”, cartaz de 1936

“Vá lá, afinal não queimaste a Schlitz!”: Anúncio à cerveja Schlitz, 1952
Outra das diferenças assinaláveis no panorama político entre as décadas de 1920-40 e o presente é o papel das mulheres. Na primeira metade do século XX, as mulheres, mesmo nos países em que tinham direito de voto, não eram uma força eleitoral distinta, não tinham lugar nas cúpulas partidárias nem nos governos (a política era um assunto quase exclusivamente masculino, mesmo nas democracias liberais) e os governos de extrema-direita na Alemanha, em Itália, em Portugal, em Espanha e na França de Vichy mantiveram-nas afastadas de lugares de relevo na sociedade e circunscritas à esfera doméstica.
No Ocidente do século XXI, as mulheres gozam (pelo menos no plano legal) de direitos idênticos aos dos homens e estão representadas nas lideranças políticas e na governação e, em menor escala, nas cúpulas das empresas, da academia e das instituições da sociedade civil. Paralelamente, tem-se assistido a uma tendência, entre as gerações mais novas, para a polarização do voto em função do género.
Nas eleições presidenciais americanas de 2024, no escalão 18-29 anos, 56% do voto masculino foi para Trump e 42% para Harris, enquanto no voto feminino 58% foi para Harris e 40% para Trump. A polarização política por género é muito mais evidente na União Europeia, onde, nas mais recentes eleições para o Parlamento Europeu, no grupo etário sub-25, 17.2% dos homens votaram em partidos de extrema-direita, mas apenas 9.5% das mulheres os acompanharam (um rácio de 1.8:1). A predominância masculina no voto na extrema-direita só não foi observada na Lituânia, na Eslováquia, na Hungria, na Roménia e na Bulgária e teve expressão máxima na Croácia (rácio de 6.0:1), Portugal (4.9:1), Dinamarca (4.4:1), Finlândia (rácio de 4.2:1) e Espanha (4.0:1). Face a esta tendência, Javier Carbonell, politólogo no European Policy Centre, argumenta, no artigo “From provider to precarious: How young men’s economic decline fuels the anti-feminist backlash” (2025), que são “motivações antifeministas que levam os homens jovens a votarem na extrema-direita” e cita uma sondagem de opinião, realizada em 30 países, em que 57% dos homens da Geração Z manifestaram concordância com a ideia de que o seu país “levou longe demais a promoção da igualdade das mulheres”. Embora as mulheres continuem a ser mais mal remuneradas do que os homens (em média, menos 12.7%, numa base horária, na União Europeia), nos últimos anos as raparigas têm, em média, vindo a alcançar maior sucesso académico do que os rapazes (48.8% de mulheres com ensino superior no escalão 25-34, contra 37.6% de homens, segundo dados de 2023), o que poderá vir, num futuro não muito distante, a inverter o diferencial de rendimento por género. Aliás, esta situação já se verifica, no escalão 18-25 anos, na Bélgica, em França e na Grécia (com a Finlândia a registar equilíbrio entre géneros). A tese de Carbonell de que o declínio económico dos homens jovens face às mulheres jovens é o principal factor que os impele a votar à direita não é, todavia, corroborado pelos dados que ele mesmo apresenta, já que, seguindo o seu raciocínio, Bélgica, França e Grécia deveriam ser os países com maior preponderância de voto jovem masculino face ao feminino, e não Croácia, Portugal, Dinamarca, Finlândia e Espanha.

“Pais saudáveis, crianças saudáveis!” (1933): Na propaganda nazi, a mulher figurava quase sempre como cuidadora de crianças
Ainda que o factor “declínio económico dos homens jovens” não seja de descurar, o fenómeno é certamente mais complexo. Por um lado, hoje, parte da extrema-direita e da direita mais conservadora e tradicionalista pretende reconduzir a mulher ao recato do lar e à sua ancestral função de parideira e criadora de crianças, um papel sintetizado no lema “Kinder, Küche, Kirche” (Crianças, cozinha, igreja), atribuído ao Kaiser Guilherme II e que o regime nacional-socialista retomou e que voltou a ser preconizado por alguns dos autores de textos para o polémico livro-manifesto Identidade e família (2024).
É compreensível que a proposta de regresso da mulher à lida doméstica possa ser visto como tranquilizador para os homens jovens que se sentem ultrapassados pelas mulheres nos domínios das credenciais académicas e das remunerações e se sentem constrangidos e inseguros nas relações afectivas devido à omnipresença do discurso woke sobre a “masculinidade tóxica”, que faz de cada macho um abusador ou um violador em potência. Mas também não é de excluir que o discurso da extrema-direita, tendencialmente assertivo, belicoso, bombástico e disruptivo, desdenhoso do diálogo e da conciliação e prometendo acção e confronto, seja mais apelativo para a psique dos jovens machos do que para a das jovens fêmeas.
Testosterona, misoginia e políticaNa análise da atracção dos jovens machos pela extrema-direita não são negligenciáveis duas “instituições” triunfantes do século XXI, intimamente interligadas: a “machosfera” e o ginásio.
O neologismo “machosfera” (um aportuguesamento do desajeitado termo inglês manosphere) designa a galáxia de canais de YouTube, podcasts, fóruns e websites consagrados ao antifeminismo, à misoginia e à homofobia, à promoção da masculinidade e do consumismo conspícuo, com ênfase na exibição de bíceps, moradias com piscina, estadias em destinos “exóticos”, automóveis desportivos, relógios, ténis de edição limitada e outros artigos e serviços de luxo, e na dispensa de conselhos sobre nutrição (é frequente o endosso de dietas hiperproteicas, ou até mesmo da “dieta paleolítica”), fitness, higiene e apresentação pessoal (com ênfase nos exercícios para desenvolver uma linha da mandíbula mais definida), empreendedorismo, investimento em criptoactivos e, last but not least, “como lidar com gajas” – um cacharolete nauseante de “masculinidade tóxica”, “masculinidade patética”, cinismo impenitente, humor boçal e fanfarronice adolescente, entrecortado por anúncios de códigos de desconto (“promo codes”) para aquisição de batidos proteicos e de vídeos que revelam o segredo para ser um podcaster de sucesso.
[“The pump boys”: uma amostra dos efeitos neurotóxicos do excesso de esteróides androgénicos anabolizantes]
A “machosfera” tem algumas afinidades com a “bro culture”, um conceito impreciso que designa uma suposta subcultura dos jovens machos americanos que se tratam entre si por “bro” (de “brother”) e cujo interesse central é a afirmação da masculinidade, através de farras, álcool, sexo e de um discurso misógino; a “bro culture” está vinculada às “fraternities” (clubes sociais universitários) e a um segmento social branco e endinheirado.
Ainda que os activistas da “machosfera” gostem de envolver o seu discurso com fragrâncias pseudofilosóficas (ou melhor, com name-dropping de autores que não leram e com sabedoria de pacotilha respigada em websites de citações e em manuais de “auto-ajuda” e “desenvolvimento pessoal”), estas não conseguem disfarçar o fedor do seu ingrediente essencial: a testosterona. A testosterona – ou os esteróides androgénicos anabolizantes que funcionam como seus sucedâneos – é também o ingrediente essencial do ginásio, um espaço que, não sendo, no moderno mundo ocidental, reservado a homens, é dominado pela obsessão masculina com a mensuração, o desempenho, a competição, a superação, o estoicismo e a afirmação de virilidade. Não por acaso, o ginásio tornou-se num espaço privilegiado para a produção de “conteúdos” para a “machosfera” e é também um assunto prioritário nas conversas que nela têm lugar.
A “machosfera” começou a desenvolver-se no final da primeira década do século XXI como reacção ao que era (e é) percebido por muitos homens como os excessos do feminismo, do wokismo e das conquistas da igualdade de género, e entumesceu-se consideravelmente com a eleição como 47.º presidente dos EUA de Donald Trump, cuja postura de macho-alfa narcisista e predador sexual colhe simpatias na “machosfera”. Este efeito foi reforçado pelo alinhamento com Trump de outras figuras públicas que gozam de apreço na “machosfera” e que, até então, tinham assumido (ou simulado assumir) posição neutra no debate político, como Elon Musk e Mark Zuckerberg. Ao decidirem acabar com a moderação de conteúdos nas redes sociais de que são proprietários (ver capítulos “O que separa a moderação de conteúdos da censura?” e “Quem lucra com a toxicidade das redes sociais?” em História para amanhã pt.2: Migrações, sustentabilidade e redes sociais), Musk e Zuckerberg também favoreceram a “machosfera”, já que os discursos misóginos agressivos deixaram de ser censurados.
É desconsolador – mas não surpreendente – que o wokismo, um movimento ferozmente sectário assente no ressentimento e protagonizado por 1) grupos identitários que se figuram como vítimas de injustiças (reais ou imaginárias) cometidas ao longo de séculos pelo cis-heteropatriarcado branco e exigem a sua reparação, e por 2) membros do cis-heteropatriarcado branco atormentados pela má consciência ou ansiosos por exibir publicamente a sua virtude (“virtue signalling”) – ver O wokismo: A ideologia que nasceu na universidade para se espalhar pelo mundo e “Somos perfeitos sem ter de fazer nada”: O wokismo e as redes (ditas) sociais) – tenha gerado um movimento ferozmente sectário assente no ressentimento, só que de sinal contrário e protagonizado pelos que se sentem ameaçados pelo wokismo.
[A bizarra transição de Mark Zuckerberg de “computer nerd” franzino para “gym bro”]
No início de 2025, pouco depois de Trump ter tomado posse como presidente pela segunda vez, o cidadão comum do mundo ocidental foi alertado para os malefícios da “machosfera” por via da série televisiva Adolescence (Netflix). Adolescence – ou melhor, a comoção mediática suscitada por Adolescence – teve o condão de fazer milhões de pais despertar, estremunhados e alarmados, de anos de alheamento ou bonomia perante o efeito das redes (ditas) sociais e “descobrir”, com surpresa, que muitos dos “conteúdos” a que os seus filhos estão expostos quotidianamente através dos smartphones são mais perigosos do que os microplásticos ou o amianto e estão a criar pequenas lagartas misóginas, que, daqui a uns anos, poderão emergir dos seus casulos e revelar-se como émulos do ex-kickboxer Andrew Tate. Tate coroou-se a si mesmo como “rei da masculinidade tóxica” e é pouco provável que alguém ouse contestá-lo, uma vez que tem mais de 10 milhões de seguidores no Twitter, ficou em 3.º lugar no ranking de pessoas mais “googladas” em 2023 e é um modelo de masculinidade (ou até mesmo um ídolo) para milhões de jovens (e menos jovens) machos desmiolados espalhados por todo o planeta. Tate tem a “virtude” de não tentar dissimular a sua natureza: “Não és capaz de caluniar-me, porque eu declaro já aqui que sou absolutamente sexista e sou absolutamente misógino e tenho dinheiro para fazer o que me dá na veneta [“fuck you money”, no original]” (entrevista ao Anything Goes Podcast Show, de James English, 2021). Andrew Tate e o irmão, Tristan, estão a ser investigados judicialmente no Reino Unido, na Roménia e nos EUA, em casos que envolvem violação e outros abusos sexuais, tráfico de seres humanos (alguns deles menores), exploração sexual, lavagem de dinheiro e agressões.

Andrew Tate (n. 1986), em 2021
Em tempos, os países periféricos e de dimensão modesta poderiam não ser muito afectados pelas tendências emanadas do universo mediático anglo-saxónico, mas na era das redes (ditas) sociais a geografia já não confere resguardo, como comprova a popularidade de Tate na “machosfera” portuguesa e vários relatórios e estudos sobre a realidade portuguesa e alguns casos de polícia com projecção mediática, que levaram Luís Neves, director da Polícia Judiciária, numa intervenção num seminário sobre violência doméstica, a 06.06.2025, a lançar um alerta para o “aumento da violência e do discurso de ódio contra as mulheres” no espaço digital.
As generalizações e as suas excepçõesO consumo regular de esteróides anabolizantes não converte, automaticamente, rapazes politicamente alheados em neonazis. Nem todos os comerciantes de batidos proteicos estão apostados em cercear os direitos reprodutivos das mulheres e têm um podcast em que quase todos os convidados são homens e uma proporção apreciável professa ideias de extrema-direita. Nem todos os influencers com pescoço de touro e músculos a mais para a exiguidade das t-shirts que envergam entendem que homem que é homem não deixa a namorada sair à noite sem ele. É duvidoso que Andrew Tate tenha pensamento político estruturado e é mais duvidoso ainda que tenha lido Mein Kampf ou ouvido falar de Alfred Rosenberg ou Carl Schmitt. Todavia, é evidente que existe uma correlação entre a “cultura de ginásio”, os “desportos de combate” (mixed martial arts, kickboxing, krav maga e similares), a “machosfera”, a misoginia e a simpatia por ideologias de extrema-direita. A “fachosfera” e a “machosfera” não coincidem, como alegam as feministas de extrema-esquerda, mas têm elementos comuns.

Alfred Rosenberg (1892-1945), um dos principais teóricos do nazismo; entre vários cargos importantes que desempenhou no aparelho do III Reich, foi Ministro do Reich para os Territórios Ocupados do Leste
Há, claro, que ter em conta que todo este fenómeno é de grande complexidade, que a realidade é dinâmica, que os julgamentos sumários e as distinções maniqueístas não nos ajudam a compreender o mundo e que todas as generalizações comportam excepções e desvios. A associação entre extrema-direita e misoginia parece ser sólida nalguns contextos, mas abre brechas quando consideramos o caso francês – Marine Le Pen é líder de facto do Rassemblement National/Front National desde que, em 2011, sucedeu ao seu pai, Jean-Marie Le Pen (ainda que, desde 2022, o líder do partido seja, formalmente, Jordan Bardella, sobrinho de Marine) – o caso italiano – Giorgia Meloni é, desde 2014, líder dos Fratelli d’Italia (e, desde 2022, também primeira-ministra) – e o caso alemão – Alice Weidel é co-líder da Alternative für Deutschland desde 2022. Para mais, a vida pessoal de Weidel (ver capítulo “A verdadeira razão da queda do Império Romano” em Civilização ocidental: Um ambicioso plano de regressão pt. 4: Liberdades) desfaz a ideia de que toda a extrema-direita é homofóbica e racista (sobretudo em relação a africanos e asiáticos) e se opõe à adopção de crianças por casais do mesmo sexo e à imigração. O vínculo entre extrema-direita e homofobia teve também uma flagrante excepção em Pim Fortuyn (1948-2002), que era abertamente homossexual e, ao mesmo tempo, líder do partido holandês de extrema-direita populista Lijst Pim Fortuyn, que era hostil ao multiculturalismo, a políticas de imigração permissivas e à comunidade islâmica.
O podcaster Joe Rogan parece, à partida, encarnar boa parte dos estereótipos associados à “machosfera”: pela sua figura, pelos seus interesses, pelo seu passado profissional, pelo perfil dos entrevistados (maioritariamente homens) que convida para o seu podcast, por ser a favor de amplas liberdades no que respeita à posse e uso de armas, por ter classificado o ex-primeiro-ministro canadiano Justin Trudeau como “ditador” e “comunista”, por ter apoiado a candidatura de Donald Trump em 2024 e por ser atentamente escutado pelo lado direito da sociedade americana (a ponto de, no Partido Democrata, haver quem defenda que “arranjar um Joe Rogan Democrata” tem prioridade sobre “arranjar um candidato presidencial viável”). Porém, Rogan também é a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo e, em 2020, apoiou a candidatura de Bernie Sanders (talvez o senador mais à esquerda no Partido Democrático).

Joe Rogan
Há quem apresente Joe Rogan como um exemplo que nos aconselharia extrema prudência quando emitimos juízos sobre as posições políticas dos indivíduos e os arrumamos sumariamente nesta ou naquela “gaveta”. Mas talvez o maior equívoco esteja em perder tempo a tentar analisar o “pensamento político” de Joe Rogan, quando é bem possível que as suas opiniões e proclamações contraditórias resultem simplesmente de o seu pensamento político (e o seu pensamento, tout court) ser tão superficial, tosco e inconsistente como o do cidadão médio. Não há dúvida de que Rogan é uma personalidade mediática de primeira grandeza e que o seu podcast aborda frequentemente assuntos políticos e isso confere-lhe um papel influente na política dos EUA; porém, não é por isso que devemos tomar os pronunciamentos avulsos de Rogan sobre assuntos candentes da actualidade por filosofia política, ou entender que elas são merecedoras de uma análise mais séria e profunda do que aquela a que sujeitaríamos a playlist de Lamine Yamal, os comentários de Ed Sheeran ao último jogo do Ipswich Town, ou o juízo do presidente do Tribunal Constitucional sobre o guarda-roupa dos galardoados na cerimónia dos Globos de Ouro da SIC. Como uma vez fez notar o filósofo Fernando Savater, “ainda que tudo saia da cabeça, convém não confundir a caspa com as ideias” (El País, 07.10.2001).
Em resumo: embora existam características comuns às manifestações da nova extrema-direita nos diferentes países, é imprescindível examinar os partidos e os seus dirigentes caso a caso. Há partidos que almejam reconfigurar a natureza profunda da sociedade de acordo com os seus ideais e há partidos de natureza mais “oportunista”, que capitalizam o descontentamento com o statu quo mas não pretendem derrubá-lo; há partidos dotados de uma sólida estrutura de ideólogos e quadros e há partidos que são projectos unipessoais de conquista de poder e notoriedade. Por exemplo, Portugal e Espanha têm uma longa história em comum e muitas afinidades culturais e sociológicas, mas o Chega e o Vox têm diferenças substanciais entre si (tal como acontece entre, por exemplo, o PSD português e o PP espanhol, ainda que correspondam ambos ao centro-direita). Nem sequer dentro de um mesmo país a extrema-direita é homogénea: em Portugal, o Chega exerce hoje um domínio indiscutível neste segmento do espectro político, mas há que distingui-lo de partidos como o ADN (Alternativa Democrática Nacional) e a Nova Direita, de movimentos mais marginais como o (entretanto extinto) Ergue-te e o Grupo 1143 e, ainda mais, de grupos assumidamente neonazis e de índole violenta, como o Movimento Armilar Lusitano – seria um tremendo equívoco assumir que são todos idênticos na natureza, na ideologia, nos propósitos, no modo de actuação e na composição sociológica dos seus militantes e simpatizantes.
Interlúdio: Entretanto, na extrema-esquerda…Enquanto os homens (e mulheres) providenciais da extrema-direita seduzem as massas com discursos messiânicos em que se arvoram em porta-estandartes de uma civilização ocidental que retratam como estando em acentuado declínio económico e moral e cuja identidade está a ser diluída pelo afluxo de gentes de outras paragens, de outras cores de pele e de outras fés, o que tem a extrema-esquerda a propor às cada vez mais inquietas e ansiosas massas do Ocidente?
Escutemos Jean-Luc Mélenchon, líder de La France Insoumise, partido com afinidades ideológicas com o “nosso” Bloco de Esquerda (LFI e BE fazem parte do mesmo grupo no Parlamento Europeu), num colóquio sobre francofonia, na Assembleia Nacional Francesa, a 18.06.2025: “A língua francesa difundiu-se pelo mundo graças ao colonialismo e esta origem, de certa forma, pesa sobre ela. […] Se alguém pudesse sugerir-me uma designação que não fosse ‘língua francesa’, seria bem-vinda. […] A língua francesa não pertence a França nem aos franceses já há muito tempo, uma vez que 29 países a têm como língua oficial. Assim sendo, a língua francesa não é propriedade exclusiva da nação francesa e muito menos, certamente, daqueles que gostariam de cristalizar a identidade francesa na sua língua. […] A crioulização é a nossa palavra de ordem. Se queremos que o francês seja uma língua comum, é preciso que seja uma língua crioula. E eu preferiria que se dissesse que todos falamos crioulo porque isso é-nos mais conveniente do que dizer que falamos francês, e isso será, sem dúvida, mais verdadeiro”.
[Jean-Luc Mélenchon, Assembleia Nacional Francesa, 18.06.2025]
A narrativa da extrema-direita fala-nos de esperança, orgulho, união, regeneração e redenção, pugna pela defesa da identidade nacional (por ilusório, fugidio e falacioso que este conceito seja), pelo regresso da ordem mundial a um tempo em que os povos estavam todos muito bem arrumados, cada um na sua courela (ainda que este tempo nunca tenha existido), pelo fim da algaraviada poliglota que tomou conta das ruas e praças da localidade onde crescemos (ainda que nenhum de nós esteja disposto a desempenhar as tarefas que os estrangeiros aqui desempenham), pela reposição dos valores cristãos como referência moral da sociedade (ainda que passemos incomparavelmente mais horas a assistir a jogos de futebol do que a ofícios religiosos e estejamos incomparavelmente mais bem informados sobre os planteis da Premier League do que sobre as Sagradas Escrituras).
A narrativa da extrema-esquerda recorda-nos a todo o momento o ignóbil passado da civilização ocidental, faz-nos co-responsáveis pelo desfile de atrocidades da história, admoesta-nos por não nos mostrarmos suficientemente compungidos por pertencermos a uma civilização predadora e extractivista, pretende incutir-nos vergonha, remorso e opróbrio, receita-nos clisteres de decolonialismo e um regime de sumos detox que limpe o nosso organismo da nequícia do cis-heteropatriarcado branco, impõe-nos penitências e cilícios espirituais destinados a fazer-nos expiar os pecados cometidos pelos nossos antepassados e pune a nossa incapacidade para acolher e integrar os estrangeiros com o espezinhamento repetido do nosso sentido de identidade e pertença até que nos sintamos como estrangeiros na nossa própria terra.
E ainda há quem se confesse surpreso com a veloz ascensão da extrema-direita.
A irresponsável leveza do votoO crescimento do voto na extrema-direita no mundo ocidental tem suscitado grande número de especulações e interpretações pela parte de comentadores, politólogos e sociólogos. Uma das teorias mais difundidas é que o voto na extrema-direita provém sobretudo dos descamisados, dos pobres coitados que foram atropelados pela globalização e foram deixados para trás pela digitalização da sociedade e a quem os partidos – do Governo ou da oposição – não prestam atenção, uma vez que são pouco inclinados a participar em eleições e não têm visibilidade nem ninguém que seja seu advogado no espaço mediático. Na perspectiva destes opinadores, dir-se-ia que o povo só exerce o seu arbítrio lúcido e informado quando vota nos partidos “tradicionais”. Já quando vota na extrema-direita populista comporta-se, nesta perspectiva, como uma massa acéfala, sem livre alvedrio, cujas escolhas são determinadas estritamente por condicionantes de natureza sociológica: possuem baixo nível de instrução; não têm hábitos de leitura de livros e jornais; executam trabalho não-especializado; auferem baixos rendimentos ou estão desempregados; habitam em regiões em que o Estado descurou o investimento em infra-estruturas e serviços públicos. Esta tendência será mais notória entre os jovens, que têm dificuldade em encontrar empregos com remunerações condizentes com as suas qualificações, ou sequer qualquer tipo de emprego, e a quem os preços astronómicos da habitação impedem o início de uma vida independente.

Resultados das eleições federais alemãs de 2025: cinzento, CDU/CSU; azul, AfD; vermelho, SPD; verde, Verdes/Aliança 90; roxo, Die Linke
Segundo esta teoria, o povo descamisado sente-se negligenciado, injustiçado e desiludido com a democracia – e mais ainda quando vêem as facilidades e mordomias que o Estado (alegadamente) dispensa a algumas minorias étnicas – e, em sinal de protesto, entrega o seu voto aos partidos de extrema-direita, que são os que se apresentam como sendo exteriores à política e prometem “drenar o pântano”, escorraçar as elites parasitárias e corruptas e desmantelar o “sistema” que, há muitas décadas, funciona exclusivamente em favor das elites. Esta teoria recebe algum apoio dos inquéritos de opinião, nomeadamente no que se refere ao comportamento eleitoral dos jovens – que revelam nítida preferência, na Europa e também em Portugal, pela extrema-direita – e à relação entre voto e perfil socioeconómico da região – na Alemanha, por exemplo, a AfD tem os seus melhores resultados nos estados que em tempos fizeram parte da República Democrática Alemã e que apresentam indicadores de emprego, rendimento per capita e investimento mais desfavoráveis.
Alguns estudos sugerem que parte dos que agora votam na extrema-direita provêm do segmento abstencionista da população. Porém, no “volume morto” dos abstencionistas há que distinguir – o que os estudos raramente fazem – entre os que são politicamente informados e não votam por entenderem que as opções partidárias disponíveis não cumprem os seus requisitos ideológicos e éticos ou não merecem a sua confiança, e aqueles que sempre viveram alheados da política, alheamento que não diz somente respeito à “actualidade política”, como à história das ideias, à história no sentido lato, à organização e funcionamento da sociedade e à consciência cívica. Este segundo grupo, onde se contam muitos jovens, é mais susceptível do que o primeiro à propaganda extremista, seja ela de direita ou de esquerda, pois a ausência de “lastro intelectual” permite que facilmente se deixem empolgar pela retórica estridente, maniqueísta e clubística típica dos extremos. Os espíritos superficiais e frívolos são matéria infinitamente moldável e, consoante as circunstâncias, o círculo de amizades e o acaso, podem aderir a uma claque de futebol, a um fan club de doom metal estónio, a um “movimento armilar” ultranacionalista, a um núcleo de “intervenção e resgate” animalista, a uma troupe de “activistas climáximos”, a uma brigada de “verdes eufémias”, a uma “união antifascista” ou a uma franchise do Daesh.
De qualquer modo, a sedução do eleitorado abstencionista explica apenas uma fracção da ascensão da extrema-direita – até porque a abstenção continua elevada (em Portugal, nas eleições legislativas, desde 2005 que se mantém consistentemente acima dos 40%) – e a verdade é que boa parte dos actuais eleitores de extrema-direita passaram muitos anos a votar nos partidos “tradicionais”. Agiriam estes eleitores de forma consciente e informada quando votavam nos partidos “tradicionais” e são agora uns ignaros facilmente influenciáveis quando votam na extrema-direita? E se o voto na extrema-direita é, essencialmente, não um voto de identificação ideológica, mas um voto de protesto contra o “sistema”, como afirmam muitos politólogos e comentadores, por que razão se direcciona esse voto maciçamente para a extrema-direita, quando há partidos de extrema-esquerda que também se afirmam anti-sistema? E como se compagina a prevalência do voto jovem na extrema-direita – um voto supostamente “desinformado” – com a reiterada proclamação de que os jovens de hoje são “a geração mais bem preparada de sempre” e estão permanentemente conectados ao manancial de informação da Internet? Que estudos permitem concluir que o voto na extrema-direita é menos convicto, menos informado e mais volátil do que o voto nos partidos “tradicionais”?
A teoria do “voto dos descamisados” não é inteiramente destituída de mérito, mas também há que considerar que nem todo o voto na extrema-direita é determinado por conjunturas socioeconómicas e demográficas e é uma reacção de descontentamento mal orientada. Há quem, mesmo não tendo, à partida, inclinação pelo ideário de extrema-direita, acabe, com espírito pragmático, por ver nesta a força mais apta e mais determinada a fazer frente ao enxame de “causas fracturantes” e exigências absurdas emanadas da extrema-esquerda woke e que conquistou boa parte das cúpulas da esquerda. E há, claro, pessoas que votam na extrema-direita porque se identificam genuinamente com as causas e os valores que estes partidos apregoam, ou, pelo menos, com as “narrativas” que estes promovem.
A identificação é facilitada por a natureza superficial, simplória, cínica, gárrula, gabarolas e acintosa da propaganda da extrema-direita estar em sintonia com o Zeitgeist do século XXI e com os modelos de comunicação reinantes nas redes (ditas) sociais. Um estudo de investigadores do INESC TEC (Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência) sobre a presença dos partidos portugueses no TikTok apurou que 1) André Ventura é o político com mais seguidores nesta rede social; 2) os seus 464.000 seguidores excedem a soma dos seguidores dos outros nove políticos do top 10: e 3) oito dos dez vídeos mais vistos são de André Ventura (dados de 17.05.2025). Comprovando que o TikTok é particularmente propício ao discurso radical, entre os políticos no top 20 do número de seguidores, 15 são de partidos radicais, nove à direita (sete do Chega, um da Nova Direita e outro do ADN), cinco de esquerda (todos do BE) e um animalista (PAN); também é sintomático que figuras de partidos que nunca reuniram votos suficientes para eleger um único deputado, como a Nova Direita e o ADN, surjam em 7.º e 8.º lugares, respectivamente.

Evolução do número de utilizadores activos (em milhões) das redes sociais em Portugal no período 2018-23, segundo a Van Marketing Digital
São dados que reforçam a ideia de que as redes sociais 1) não são politicamente neutras e 2) são o factor mais disruptivo no panorama político das últimas décadas (ver capítulo “Os computadores e as redes estão a criar populistas?” em Nexus: As redes de informação, a humanidade e as (revira)voltas de Yuval Noah Harari). Muitos comentadores acusam os partidos tradicionais de falta de visão e inércia, por descurarem a presença nas redes sociais – mas em que tipo de presença estão a pensar? Redes como o TikTok são espaços favoráveis a graçolas primárias, danças simiescas, “desafios” desmiolados, exibicionismo consumista, partidas adolescentes, “lip-synch videos”, conselhos sobre cosmética e “fit checks”, não a debates sobre filosofia política ou a apresentação de programas de governação. As redes sociais estão abertas aos mais variados conteúdos e formatos de comunicação mas estão muito longe de serem um campo de jogos plano. O político que aí pretenda conquistar “views” e “likes” melhor fará em prescindir de mensagens minimamente informativas e elaboradas e conformar-se ao espírito dominante: vídeos curtos, fátuos e “divertidos” (ver capítulo “Agrilhoados na caverna digital” em A covid-19 está a converter a vida numa fantasmagoria?). Quem queira impor-se num meio onde reina o “palhaço da turma” e o aspirante a “stand-up comedian” terá de comportar-se como um deles.

Percentagem de utilizadores activos das principais redes sociais em Portugal, por escalão etário, segundo a Van Marketing Digital
É também pertinente considerar que, em Portugal, o impressionante aumento do número de diplomados registado desde 1974 corresponde, em parte, a uma certificação de secretaria, aliada a um baixo nível de exigência, ou, na melhor das hipóteses, a um treino visando a mera execução de tarefas técnicas e burocráticas. O diploma universitário não é garantia de capacidade para pensamento crítico nem de competências mínimas de literacia mediática, por vezes, nem sequer de literacia “tout court”. A moderna universidade-aviário não pretende (nem seria capaz de) ministrar formação moral, fomentar a empatia ou desenvolver o espírito de cidadania (ver capítulo “A universidade como forja de cidadãos: ‘Mulher gorda’ e outras vivências marcantes” em Ensino superior e investigação: Há uma fuga de cérebros no país dos senhores doutores? e Ensino superior e investigação: A miragem das pós-graduações).
Por outro lado, nem todos os cidadãos que votam nos partidos “tradicionais” o fazem porque possuem pensamento político e filosófico fundamentado e amadurecido. A maior parte dos eleitores, seja qual for o seu posicionamento no espectro político, faz as suas escolhas essencialmente por motivos fúteis (o candidato é bem falante os fatos são de bom corte e caem-lhe bem) e circunstanciais (a economia está pujante), ou por fidelidades tribais similares às que determinam a identificação com um clube de futebol, ou por esperar obter benefícios materiais, directos ou indirectos, no caso de o partido que apoia vencer (ver capítulo “Ideologia e carácter” em Donald Trump: Anatomia de um narcisista). Se o voto nos partidos “tradicionais” fosse convicto, informado e determinado por critérios ideológicos sólidos e arreigados, como se explica a rápida e maciça transição do comunismo para a extrema-direita nas regiões operárias de França e no Alentejo? Estas deslocações de voto só são possíveis porque o compromisso original do eleitorado com a extrema-esquerda era tão fátuo e pouco fundamentado como a sua presente opção pela extrema-direita.
O triunfo do videirismoMas quem poderá censurar a maioria dos cidadãos comuns por votar levianamente, se, do lado dos políticos profissionais, há quem seja militante desde a adolescência e até desempenhe ou tenha desempenhado funções como deputado municipal, presidente de câmara, deputado à Assembleia da República, secretário de Estado ou até ministro, sem ter perdido um minuto da sua vida a meditar sobre questões ideológicas? No século XXI, a perspectiva sobre a “carreira política” coloca a ênfase, não na “política”, mas na “carreira”, e não se guia por ideais, mas por considerações práticas. Assim, se este político de carreira se vir preterido, pela direcção do partido, na escolha do candidato a uma presidência de câmara, ou se vir relegado, nas listas de candidatos a deputados, para um lugar não-elegível, mudar-se-á num ápice para um partido que creia oferecer-lhe melhores perspectivas de carreira. E fá-lo-á sem ser afligido pela ideia de estar a trair as suas convicções ideológicas, simplesmente porque nunca teve nenhuma e continuará a não tê-las no novo “veículo” para onde se mudou – e é este absoluto vácuo ideológico que lhe permitirá, sem qualquer engulho de consciência ou sentido do ridículo, entregar-se com denodo, a partir da sua nova tribuna, à áspera reprovação da actuação pretérita do partido de que fez parte durante tantos anos e em relação ao qual nunca formulou reservas ou manifestou divergências, por ínfimas que fossem, e que sempre defendeu com pundonor.
No Público de 02.08.2025, na reportagem “Políticos vira-casacas? Eleitores ‘não vão por partidos’”, um candidato ao município de Vila do Bispo que já militou no PSD e no PS e por estes partidos assumiu cargos autárquicos e agora alinha no Chega, justificava a sua transumância partidária com este caviloso argumento: “Se fosse vira-casacas, estava sempre no poder. As coisas poderiam ter sido muito mais simples se tivesse estado sempre ao lado e fosse um sim-sim. Mas sei pensar pela minha cabeça e prefiro mudar de partidos do que mudar a minha personalidade e forma de actuar”. E, voilá!, assim se transmuta uma torpeza num predicado.
Um dos aspectos mais fascinantes e desprezíveis da natureza humana é a infinita capacidade do ego para reescrever a história, redecorar o palco, rearranjar as estrelas e reconfigurar o universo de forma a que o ego surja sempre imaculado, coerente e virtuoso aos olhos dos outros e de si mesmo. O eleitorado, que, nos inquéritos de opinião, costuma reprovar a classe política pela falta de integridade, acaba, na prática, por fazer um julgamento benévolo dos políticos que facilmente abdicam dos seus princípios morais ou que os subjugam às conveniências e interesses do momento – a probidade é valorizada em abstracto, mas, na prática, aceita-se que cada um tenha de “fazer pela vida” e que isso implica algum contorcionismo ético. Os “populares” de Vila do Bispo e Aljezur auscultados pela referida reportagem mostraram-se, maioritariamente, lenientes na apreciação do comportamento dos políticos vira-casacas e deram mais importância aos candidatos enquanto indivíduos do que aos partidos em que militam ou que os apoiam. Em síntese, os eleitores “não vão por partidos” – ou seja, pouco lhes interessa a ideologia – e são indulgentes no julgamento do carácter dos candidatos – ou seja, pouco lhes interessa a ética. Neste infecto caldo de cultura, é natural que a espécie que mais prospera seja o videirinho.
Política light: zero ideologia, o mesmo sabor
Lenin discursa na Praça Vermelha, em Moscovo, do 1.º de Maio de 1919
Em tempos, a esquerda dava grande ênfase à ideologia e entre comunistas esperava-se que qualquer militante com aspirações a um lugar de liderança, por modesto que fosse, estivesse familiarizado com as anacrónicas obras de Marx e de Lenin e fosse capaz de citar de cor trechos delas e desse provas de conhecer a doxa partidária de trás para a frente e de ter na ponta da língua conceitos como “materialismo histórico”, “socialismo científico” ou “luta de classes”.
Era também frequente a ocorrência de fracturas, sobretudo na extrema-esquerda, devido a divergências ideológicas, algumas delas tão derrisórias e bizantinas como as que determinaram as fracturas no seio do cristianismo (ver capítulos “O Grande Cisma de 1054: Antecedentes” e “A Cristandade dividida” em Civilização ocidental: O Grande Cisma de 2025 d.C.). Porém, com a passagem do tempo, a componente ideológica foi evaporando-se e a política ficou reduzida ao calculismo, ao soundbite, à gestão das promessas e das expectativas dos eleitores, à análise das sondagens de opinião e às reacções dos “focus groups”. Quem define o que deve ser dito, quando e como, já não são os ideólogos do partido, mas os consultores de comunicação e os estrategas de campanha, com reputação construída a impingir flocos de cereais, aparelhos auditivos e operadores de telecomunicações às massas.
São também os “marqueteiros” que definem o “onde” da performance política, que mudou dramaticamente no século XXI: o candidato em campanha já não participa em “sessões de esclarecimento”, calcorreia ruas comerciais e mercados em “arruadas”, rodeado de uma comitiva de “jotinhas” que simula um ambiente festivo e triunfal, e a sua comunicação fica-se pela troca de piropos com as vendedeiras, por apertos de mãos, beijos e abraços a transeuntes incautos e pelas selfies com militantes ou com gente fascinada por celebridades televisivas ou, mais simplesmente, que busca “conteúdos” para alimentar sua página no Facebook ou no Instagram – tudo situações que não requerem qualquer menção a ideologia ou a uma ideia para o país. Nos mass media, o candidato em campanha evita o acareamento com jornalistas especializados em política e com politólogos, sociólogos ou economistas, que poderiam tornar evidente a sua ausência de ideias e as suas contradições, e refugia-se nos programas televisivos de entretenimento light nos horários da manhã e da tarde e nos podcasts de humoristas e influencers, onde não corre o risco de ser confrontado com perguntas embaraçosas e apenas tem de mostrar-se afável e “relatable” e fazer algumas inconfidências inócuas e inanes sobre a sua vida privada.
Por vezes, ainda há políticos que proclamam, galantemente, a defesa intransigente de uma “política de esquerda”, ou (menos frequentemente) de “uma política de direita”, ainda que sem explicar em que consistem tais políticas, em que princípios estão ancoradas, que racionalidade têm no mundo presente e o que as torna superiores às alternativas, como se ser de “esquerda” (ou de “direita”) fosse em si mesmo uma virtude tão evidente e conclusiva que dispensa qualquer elucidação ou argumentação. Outros resumem a sua ideologia a lutar por “tudo o que for bom para o povo e para os trabalhadores portugueses” (e quem, de um extremo a outro do espectro político, ousaria contestar tão generoso e vago propósito?). Evacuada a ideologia, o “combate político” passou a ter natureza exclusivamente performativa e os seus arrebatamentos retóricos, a sua grandiloquência tribunícia, a sua vociferação apopléctica e as “defesas da honra” em tom ultrajado só conseguem empolgar os ingénuos, os sectários e os espectadores fiéis da ARTV/Canal Parlamento. Esperar que o “combate político” proporcione um genuíno debate de ideias é tão insensato como esperar que um combate de wrestling ofereça verdade desportiva.

Em Março de 2010, a World Wrestling Entertainment (WWE) baniu os “chair shots” visando a cabeça do adversário, mas os que visam o corpo continuam a ser permitidos

Cícero, um dos grandes oradores do mundo romano, acusa Catilina de conspiração, no Senado romano: Aguarela por Hans W. Schmidt (1912)
Apesar de, aqui e ali, se fazerem ouvir proclamações de índole mais lírica, a prática tende a ser a que foi enunciada por Luís Montenegro, pouco antes do início do primeiro conselho de ministros do XXV Governo Constitucional, a 06.06.20205: “Nós, como somos centrais, tanto vamos para um lado como para o outro. […] Sempre com esta forma muito polivalente de andar a subir e descer, a planar, para a esquerda, para a direita, para o centro, mas sempre para a frente”. Esqueçamos a ideologia, os grandes desígnios nacionais, uma visão para o futuro da sociedade e outras quimeras – o que é imperativo é continuar “sempre para a frente”, isto é, permanecer no poder tanto tempo quanto possível. Luís Montenegro explanou este seu entendimento da política e da governação no tom sorridente que é sua marca desde que ascendeu a primeiro-ministro e cuja adopção lhe foi, provavelmente, recomendada pelos consultores de comunicação (mas que Montenegro reclama sempre ter sido o seu, confiando em que nos tenhamos esquecido dos anos em que foi líder parlamentar do PSD, durante os quais afivelou uma postura quezilenta, carrancuda e azeda). Todavia, neste caso, sob a ligeireza e a disposição prazenteira há uma genuína candura. O seu entendimento da política sempre se resumiu a isto: fazer o que for preciso para chegar ao poder e lá permanecer. Será escusado perguntar-lhe para que pretende o poder, pois isso é coisa em que nunca pensou. Montenegro é, no cenário português, a perfeita encarnação da vontade de poder que se esgota em si mesma, do poder que é ambicionado não como meio de transformação, mas como fim.
As palavras de Montenegro não foram meramente um gracejo desopilante nem uma opinião pessoal, uma vez que foram corroboradas, poucos dias depois, no encerramento do debate do programa de Governo, por Hugo Soares, secretário-geral do PSD, líder da bancada parlamentar do PSD e mimoso fruto da academia de filistinismo e “artes marciais mistas” que são as juventudes partidárias: “Uns estão do lado das ideologias; nós estamos do lado da realidade”. Quando o confrangedor hino de campanha do PSD para as eleições legislativas de 2025 apela “deixa o Luís trabalhar”, o labor a que se refere é a satisfação ou apaziguamento das clientelas, o abafamento ou minimização dos escândalos e falhas que embaraçam o Governo, os malabarismos negociais com as diferentes forças parlamentares, o empolamento de sucessos comezinhos para que pareçam grandes triunfos – a conciliação de tudo isto é tarefa árdua, sobretudo quando não se dispõe de uma maioria confortável na Assembleia da República, e é tão absorvente que não sobra tempo nem energia para a governação.
Não se trata de uma peculiaridade do PSD, ou do centro-direita, já que a governação de António Costa (para não recuar mais) se alicerçou no mesmo pragmatismo e no mesmo vácuo ideológico (ainda que Costa, mais sinuoso e astuto do que Luís Montenegro e Hugo Soares, nunca tenha cometido o deslize de o admitir publicamente). Nem sequer se trata de uma idiossincrasia lusitana e para comprová-lo basta olhar para o país vizinho, onde o primeiro-ministro Pedro Sánchez se tem entregado a inenarráveis contorcionismos ideológicos e éticos de forma a manter-se no poder.
O satirista americano Ambrose Bierce definira, no Dicionário do Diabo, a política como “uma luta de interesses disfarçada de debate de princípios”, mas, se assim era em 1906, já não o é hoje, pois são cada vez menos os políticos que ainda se dão ao trabalho de fingir que há princípios em jogo.
Alguém quer realmente o desmantelamento do sistema?
“A oração fúnebre de Péricles” (1852), por Philipp Foltz. Péricles, um mestre da oratória e “o primeiro cidadão de Atenas” (nas palavras do general e historiador Tucídides, seu contemporâneo), foi “archon” (governante) de Atenas entre 461 e 429 a.C., um dos períodos de maior esplendor desta cidade-estado
Luís Montenegro e Hugo Soares limitaram-se a expressar publicamente e de forma clara, aquilo que é, com uma ou outra variação ou nuance, o entendimento da política que hoje reina entre os políticos dos partidos situados entre o centro-direita e o centro-esquerda: expurgada de conteúdo ideológico e regida pelo mais rasteiro pragmatismo. É compreensível que os eleitores não se deixem arrebatar pela “forma muito polivalente” de fazer política e sejam atraídos para um populismo de extrema-direita que se reclama campeão dos valores civilizacionais do Ocidente e do espírito ancestral da nação e apresenta cada processo eleitoral, não como uma fastidiosa rotina, mas como um embate titânico e decisivo entre as forças do Bem e do Mal.
Mas será que, sob o discurso enérgico, assertivo, tremendista e espalha-brasas do Chega existe uma intenção sincera de reestruturar profundamente o Estado e a sociedade? O discurso de André Ventura é ostensivamente anti-sistema, mas, uma vez chegado ao poder (possibilidade que se afigura mais provável a cada eleição), fará tenção de mexer no sistema?
Quando surgiu, o Chega apresentou-se com propostas de índole libertária, visando reduzir o Estado à expressão mínima, mas descartou-as rapidamente, ao perceber que iam ao arrepio do sentimento geral do eleitorado. É certo que Salazar foi afastado do poder há 57 anos, mas uma parte substancial dos portugueses continua conformada com o “viver habitualmente” propugnado por Salazar e não concebe melhor projecto de vida do que acoitar-se sob a asa protectora do Estado.
No que toca a propostas legislativas e à (suposta) urgência em fazer nova revisão constitucional, as “bandeiras” do Chega podem ser repartidas em dois grupos: de um lado estão a introdução da pena de prisão perpétua, punições mais duras para crimes de pedofilia (incluindo castração química), deportação de imigrantes que tenham cometido crimes, exclusão de ciganos, imigrantes e desempregados de alguns direitos e benefícios sociais e cívicos; do outro lado estão o fim da obrigatoriedade da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento nas escolas (ou a revisão profunda dos seus conteúdos) e o combate à “propaganda da ideologia de género”. Ou seja, de um lado estão medidas do foro criminal e penal, que visam tranquilizar os que receiam pela sua segurança (e são muitos, num país extremamente envelhecido e que a CMTV é, por larguíssima margem, o canal mais visto na televisão por cabo). Do outro lado, estão medidas na esfera das “guerras culturais”, que visam tranquilizar os que se sentem ameaçados pelas investidas do wokismo. Nem umas nem outras contribuirão para fazer de Portugal um país mais dinâmico, eficiente, justo, instruído e próspero e menos desigual do ponto de vista socioeconómico e geográfico.

Busto de Sólon, cópia romana de original grego datado de c.110 a.C. Sólon (c.630-c.560 a.C.) promoveu uma “revisão constitucional” que permitiu retirar Atenas de uma situação de conflito político, agitação social e descrédito institucional, resultante das incongruências e anacronismos do corpo legislativo herdado de Draco (fl.c.625-c.600 a.C.), o primeiro legislador da cidade-estado
Ventura alerta para as ameaças que impendem sobre Portugal e a civilização ocidental e propõe-se salvar ambos pondo termo à “III República” (assim denomina o sistema político em vigor desde 1974) e refundando o regime. Mas Ventura está consciente de que a maior parte dos portugueses que clamam por mudança são inatamente conservadores e que mesmo os “descamisados” não querem uma revolução, apenas aceder a alguns dos subsídios e mordomias dispensados pelo munificente Estado.
Ventura denuncia o imobilismo de Luís Montenegro, que equipara a um “daqueles indivíduos que gostam de convencer as pessoas de que vão fazer alguma coisa, mas usam aquela máxima chinesa que é ‘para que tudo fique igual é preciso que mude alguma coisa’. Ou seja, pegar numa coisinha qualquer e dar ali um toque para que tudo fique na mesma” (entrevista ao canal Now, Maio de 2025). A “máxima chinesa” é uma fala de uma personagem de O leopardo (1958), do italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa, a citação correcta é “se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude” e o seu sentido é mais sofisticado, mas percebe-se a ideia que Ventura pretende transmitir. Só que esta também se aplica a si próprio: tal como os “políticos do sistema” que recrimina, também Ventura ambiciona o poder como fim em si mesmo.
A principal mudança de fundo que se perspectiva no caso de Ventura ascender ao poder é que Portugal será governado de forma mais autoritária, pois o próprio, consciente de que muitos portugueses anseiam por um Homem Forte, que ponha fim ao “caos” e às “poucas-vergonhas”, já o anunciou explicitamente: “Alguns perguntam-se também ‘Será que ele vai ser autoritário? Tem pinta de autoritário’. Em alguns casos vou, e também não quero que ninguém vote ao engano, se querem votar em mariquinhas, não votem em mim”.
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Civilização ocidental: Luz negra para um mundo pós-humano
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