Drones versus Caças de Última Geração

O ataque coordenado ucraniano contra bases aéreas estratégicas da Rússia de 1 de Junho de 2025 representa não apenas um feito militar muito audacioso, mas um divisor de águas na guerra em curso. A operação, baptizada de “Teia de Aranha”, destruiu ou danificou mais de 40 aeronaves, incluindo bombardeiros estratégicos com capacidade nuclear em quatro bases aéreas russas, algumas localizadas a mais de 4.000 km da linha de frente, como Olenya, na região de Murmansk.
A Ucrânia afirma ter destruído mais de 30% da frota estratégica russa, atingindo modelos como Tu-95MS, Tu-22M3 e aviões A-50, essenciais para a capacidade de ataque de longo alcance da Rússia. A percentagem pode ser exagerada (“fog of war”), mas é certo que as perdas foram muito significativas porque actualmente Moscovo já não tem capacidade industrial para repor essas aeronaves a curto ou médio prazo: não há linhas de produção activas, as peças de reposição são escassas, e a canibalização de aparelhos antigos é insuficiente para compensar as perdas. Isso representa uma verdadeira “desmilitarização”, termo que ironicamente a própria Rússia utilizou para justificar sua invasão à Ucrânia, e que, agora, acaba por ser aplicada pela Ucrânia à frota aérea estratégica russa, como antes já o tinha feito (também com drones) à frota russa do Mar Negro que agora está refugiada na base naval de Novorossiisk.
O ataque surpreendeu não apenas pela distância dos alvos, mas pela engenhosidade logística assim demonstrada: os drones foram contrabandeados para dentro da Rússia, escondidos em compartimentos secretos de camiões TIR (aparentemente de empresas russas que não sabiam o que estavam a transportar), e lançados remotamente a partir de pontos móveis próximos das bases aéreas russas. O controle dos drones foi feito via redes móveis civis russas, utilizando sistemas como o Ardupilot e modems LTE, sem necessidade de operadores localizados perto das bases.
A operação expôs falhas gritantes na segurança interna russa. A facilidade com que camiões pesados transportando drones circularam milhares de quilómetros e estacionaram próximos de instalações militares estratégicas dá provas de uma combinação de ousadia ucraniana e incompetência grosseira colossal por parte da Federação Russa, das suas forças de polícia, segurança e agências de informação.
O prejuízo estimado ultrapassa 7 mil milhões de dólares e, mais grave, compromete a capacidade de Moscovo para manter a sua postura permanente de ameaça nuclear e de ataques de longo alcance. Além do mais, o ataque ocorre nas vésperas de novas negociações de cessar-fogo, fortalecendo a posição ucraniana à mesa de diálogo, mas não é certo que haja uma relação ou de que esta seja positiva dado que a operação demorou mais de um ano a preparar e é impossível que estas reuniões na Turquia estivessem em perspectiva quando a Ucrânia começou a preparar esta operação.
Para a Rússia, o episódio é duplamente humilhante: revela uma grande vulnerabilidade no seu próprio território e destrói o mito de invulnerabilidade de seus activos estratégicos. Para a Ucrânia, é uma demonstração de criatividade, resiliência e capacidade de adaptação tecnológica, mesmo diante de recursos limitados.
A operação “Teia de Aranha” inaugura assim uma nova era nos conflitos modernos, em que a criatividade logística e o uso de tecnologia acessível podem vencer defesas tradicionais e alterar o equilíbrio estratégico. A Rússia, se quiser evitar novos desastres, terá que repensar urgentemente a sua doutrina de segurança interna e investir mais em contramedidas electrónicas, tais como bloqueadores de sinal, que poderiam ter evitado parte das perdas de 1 de junho.
Em suma, o ataque ucraniano não apenas destruiu aviões: apesar de toda a censura na Rússia as publicações em vários canais de Telegram russos mostram uma severa erosão na confiança nas suas lideranças, desafiou paradigmas militares e mostrou ao mundo que na guerra do século XXI a inovação pode ser mais letal do que o poderio bruto.
A destruição de um terço da frota aérea estratégica russa tem impacto profundo e imediato sobre a capacidade de defesa estratégica da Rússia, com efeitos que vão além do simples número de aeronaves reduzidas ao inventário.
1. A aviação estratégica russa, composta por bombardeiros como Tu-95MS e Tu-22M3, é fundamental para a projecção de poder, lançamento de mísseis de cruzeiro e manutenção da dissuasão nuclear. Se se confirmar mesmo a perda de um terço dessa frota, fica severamente limitada a capacidade russa de realizar ataques de longo alcance, tanto convencionais quanto nucleares, e reduzida a sua margem de manobra em operações ofensivas e de retaliação.
2. A Rússia não será capaz de repor as aeronaves estratégicas perdidas, pois não possui linhas de produção activas para esses modelos e depende da canibalização de peças de aviões antigos para manutenção das existentes. As sanções internacionais agravam a situação, dificultando o acesso a componentes e tecnologia de ponta, tornando a recuperação da capacidade perdida um desafio de longo prazo. Por outro lado, dado os normais ciclos de manutenção e o facto de a frota aérea russa ser muito envelhecida, significa que apenas cerca de metade está disponível a cada momento.
3. A perda significativa de bombardeiros estratégicos enfraquece a imagem de invulnerabilidade da Rússia e pode comprometer a sua capacidade de dissuasão, tanto perante adversários quanto perante aliados. A dificuldade em responder a ataques com igual intensidade ou manter operações de bombardeio estratégico reduz o peso da Rússia em negociações e no cenário internacional.
4. Com a aviação estratégica enfraquecida, a Rússia tenderá a aumentar o uso de drones (sendo que fabrica actualmente cerca de cem Shahed por dia), mísseis de menor precisão (actualmente boa parte de origem norte-coreana) e outros armamentos antigos mas ainda letais, como já vem ocorrendo com crescente intensidade nos últimos meses. Isso pode sobrecarregar outros sectores das Forças Armadas, diminuir a eficácia dos ataques e aumentar a dependência de aliados externos, como o Irão e a Coreia do Norte e, consequentemente, a reduzir a sua posição negocial frente a estes aliados.
5. Por fim, a incapacidade de repor rapidamente as aeronaves perdidas e a necessidade de preservar o que resta da frota forçará Moscovo a adoptar estratégias mais defensivas e cautelosas, limitando sua capacidade de apoiar operações terrestres, atacar alvos estratégicos na retaguarda inimiga e responder a eventuais escaladas do conflito. Nesta fase não acredito que a Rússia responda com armamento nuclear embora uma grande operação de bombardeamento de alvos civis a Kyiv, conduzida através do lançamento de centenas de drones seja muito provával. Se actualmente, a Rússia consegue produzir 100 drones kamikaze Shahed por dia, e acredito que tem capacidade para aumentar a produção diária para até 500 unidades. O plano inicial era produzir mais de 6 mil drones até o verão de 2025, mas o objectivo foi alcançado um ano antes do previsto, com a produção atingindo cerca de 2.000 unidades por mês no final de 2024 o que indica que é possível aumentar ainda mais esse número e massacrar as cidades ucranianas com estes meios, mais baratos, menos precisos, mas eficazes contra alvos civis.
Por outro lado, a operação “Teia de Aranha”, expôs muitas vulnerabilidades russas e deixou uma pergunta no ar que deve ser colocada a todos os países e, nomeadamente, a Portugal: ainda faz sentido gastar muitos milhões de euros em aviões de guerra de 6.ª geração como o F-35?
O F-35 é o avião mais caro jamais desenvolvido. Cada unidade custa cerca de 82 a 109 milhões de dólares. É uma máquina extremamente sofisticada, cheia de sensores e tecnologia furtiva, capaz de escapar a radares e funcionar como uma espécie de centro de comando voador. Mas, perante a realidade actual, onde um enxame de drones baratos comandados por um único operador remoto ou por um programa de IA pode causar danos da escala da “Teia de Aranha”, devemos questionar se esse tipo de investimento continua a ser razoável.
A guerra moderna está a mudar rapidamente. Drones pequenos, baratos, controlados com software livre e modems de internet 4G, estão a fazer o que antes só era possível com bombardeiros caríssimos: destruir alvos estratégicos, desorganizar o inimigo e alterar o rumo de uma guerra. A criatividade, a flexibilidade e o uso inteligente da tecnologia acessível estão a ganhar mais peso do que o simples poder de fogo.
Isso quer dizer que defendo que devemos abandonar os grandes caças como o F-35? Não exactamente. Estes aviões ainda têm um papel importante, especialmente em situações em que é necessário enfrentar defesas aéreas poderosas ou actuar em conjunto e em rede com outros meios tecnológicos. Mas o que já não faz sentido é apostar tudo neste tipo de aparelhos. O equilíbrio precisa mudar: investir mais em tecnologias que são baratas, adaptáveis e que podem ser usadas em grande escala: como drones, defesa electrónica, inteligência artificial e cibersegurança.
Portugal tem aparentemente planos para adquirir 36 aeronaves F-35 Lightning II, implicando um custo total estimado em mais de 5,4 mil milhões de dólares. Mas este valor pode ser mal aplicado. Continuo a acreditar que a melhor aposta é optar por aparelhos Dassault Rafale e investir no desenvolvimento do caça europeu de 6.ª geração FCAS (“Future Combat Air System”) a par de meios de transporte (naval, terrestre e aéreo) de enxames de drones.
Parte destes 5,4 mil milhões de euros poderiam ser usados para adquirir até 180 mil drones suicidas ou mais de 5 milhões de drones FPV, capazes de lançar granadas, destruir tanques ou atingir infantaria com precisão. A diferença – em termos de eficiência de investimento – é brutal. Com o custo de um único F-35, é possível produzir entre 1.500 e 2.000 drones kamikaze de tipo “Shahed” ou até 80 mil drones FPV artesanais. Estes pequenos aparelhos já mudaram a natureza da guerra. Tornaram-se a nova artilharia móvel, inteligente e, acima de tudo, mais acessível a um país de médias dimensões e com os constrangimentos orçamentais do nosso país.
A guerra do século XXI deixou de ser dominada apenas por poder aéreo de alta performance. Hoje, quem vence não é necessariamente quem tem os aviões mais rápidos ou os mísseis mais caros, mas sim quem consegue adaptar-se mais rápido, inovar mais barato e multiplicar os seus meios de ataque, como demonstrou aliás, e de forma muito cabal, esta operação ucraniana.
observador