Todos os governos têm a propensão para financiar o Estado com fundos europeus

Ricardo Rio alerta que uma lógica de centralização dos fundos europeus só será aceitável com o envolvimento das regiões. Só assim os objetivos poderão ser alcançados, diz no ECO dos Fundos.
“Infelizmente, o Estado também tem tido essa propensão e de uma forma transversal a diferentes governos, sempre que exista essa oportunidade, de se financiar ele próprio naquilo que é a sua atividade e a sua gestão corrente com verbas que deveriam ser dirigidas para outras prioridades”, diz Ricardo Rio, o autarca de Braga que é relator do parecer sobre a Prontidão Europeia para a Defesa 2030 e comissário europeu sombra para os Assuntos Locais da Eurocities.
Num momento em que está em discussão o próximo quadro comunitário de apoio e a possibilidade de atribuir as verbas perante a definição de metas e marcos, como no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) em detrimento da atual prática da contra fatura, Ricardo Rio defende que é necessário garantir o envolvimento das regiões.
“Tivemos um péssimo exemplo com os PRR. Não foi só em Portugal que houve um modelo de auscultação quase pró-forma das autoridades locais”, “o que penaliza a qualidade da própria estratégia e depois a sua capacidade de implementação”, sublinhou. O responsável diz ainda que deveria “haver a coragem a nível europeu” para fazer algo “altamente pernicioso – o reaproveitamento das verbas dos PRR”.
“Há verbas que com um estender do prazo, poderiam ser claramente concretizadas e que teriam um interesse estratégico para o país maior, não obrigando a que esses projetos fossem financiados com outras fontes de financiamento”, sublinha Ricardo Rio.
No próximo quadro financeiro plurianual está a ser discutida a aplicação de uma lógica diferente de prioridades, mas também uma lógica diferente de atribuição das verbas, com uma maior centralidade. Qual a sua posição relativamente a isso?O discurso da Comissão, que tem validado, digamos assim, as propostas que têm sido apresentadas, agora mais recentemente, no passado mês de julho, tem muito a ver com desburocratização, com simplificação, com limitar esta proliferação de linhas de financiamento que havia até hoje, e tudo isso é muito meritório.
Agora, quer o Comité das Regiões, quer a Eurocities – da qual pertenço à Comissão Executiva, e que aliás criou há um ano, antes da eleição do Parlamento Europeu, um gabinete sombra de comissários onde tenho a responsabilidade dos assuntos locais – tem defendido que tudo isto tem de ser feito respeitando um princípio de governança multinível.
Ou seja, tudo o que venha a ser desenhado, tudo que venha a ser gizado depois na sua implementação, tem de envolver também, de uma forma direta e ativa, as autarquias, os poderes locais e regionais. Não temos poderes regionais, mas nos outros países eles existem, portanto têm de ser também devidamente valorizados.
E para isso há uma dimensão de planeamento, há uma dimensão de auscultação. Tivemos um péssimo exemplo com os Planos de Recuperação e Resiliência. Não foi só em Portugal que houve um modelo de auscultação quase pró-forma das autoridades locais. Só tardiamente, para validar administrativamente esse processo, é que acabaram por ser chamadas, o que penaliza a qualidade da própria estratégia e depois a sua capacidade de implementação.
Esta proposta, do ponto de vista da centralização e da criação de uns novos PRR a nível nacional, só poderá ser aceitável –e tem sido essa a nossa posição – se houver um envolvimento direto dos poderes locais na gestão desses mesmos fundos, na cativação de verbas para esses mesmos poderes locais, na concretização de objetivos no seu território.
Até porque há aqui também uma ideia que tem que ser desmistificada. Não estamos a defender os nossos interesses, não há aqui uma lógica corporativa dos poderes locais. Está hoje cabalmente demonstrado que os objetivos da União Europeia, os objetivos globais, só poderão ser atingidos se houver esse mesmo envolvimento. Se não houver esse envolvimento não vão ser atingidos.
Está hoje cabalmente demonstrado que os objetivos da União Europeia, os objetivos globais, só poderão ser atingidos se houver esse mesmo envolvimento. Se não houver esse envolvimento não vão ser atingidos.
Por exemplo, mais de 70% das metas que estavam implícitas no Green Deal têm de ser concretizadas a nível local. Se não houver essa capacitação, se não houver a mobilização de fundos, obviamente, torna-se mais difícil. E depois, com uma outra dimensão: os fundos também não deveriam ser totalmente centralizados a nível dos Estados-membros.
Deveria haver ainda linhas de financiamento a que as próprias cidades pudessem aceder a nível da União Europeia. E, inclusivamente, haver verbas que fossem dirigidas para uma questão que muitas vezes tem sido descurada – a capacitação, a criação de competências de massa crítica, quer a nível político, quer a nível técnico, nos poderes locais e regionais da União Europeia.
Neste momento, estão com 33,5 mil milhões de euros destinados a Portugal, nesta fase inicial das negociações. Isto pode melhorar? Ou estamos só a falar de um rearranjar entre gavetas deste montante?Uma das questões que poderia mitigar um pouco estes riscos – que todos estamos conscientes da perda de financiamento em termos comparativos, ou de limitação dos recursos a que vamos ter acesso – era haver a nível europeu a coragem para fazer algo que não está ainda assumido e que é altamente pernicioso: o reaproveitamento das verbas dos Planos de Recuperação e Resiliência.
Em Portugal, como noutros Estados-membros, estamos em verdadeiro contrarrelógio a tentar aprovar à última da hora, concretizar, executar financeira e fisicamente…
Estamos a gastar em vez de estar a investir?Exatamente, em muitos casos é isso que está a acontecer. Tentar arranjar oportunidades rápidas de alocação de verbas para podermos não desaproveitar esses fundos, quando isso faz-nos perder o sentido estratégico desses mesmos investimentos.
Há verbas que, com um estender do prazo, poderiam ser claramente concretizadas e que teriam um interesse estratégico para o país maior, não obrigando a que esses projetos fossem financiados com outras fontes de financiamento. Isso que acontece em Portugal também está a acontecer a nível europeu.
Portanto, uma das coisas que a própria União Europeia deveria fazer era reaproveitar as verbas não utilizadas dos PRR e incorporá-lo neste novo quadro financeiro para o podermos robustecer. Até do ponto de vista político, todos poderiam sair a ganhar, dizer que não estão a perder em termos financeiros.
Mas, esse reaproveitamento já vai estar, por exemplo, a financiar os programas da defesa.Não, boa parte dessas verbas vão ser utilizadas no reembolso dos empréstimos que foram contratados. Não há aqui um aproveitamento tão direto.
Não há um desperdício de dinheiro.Mas não é em benefício do desenvolvimento dos projetos ou do financiamento direto à economia.
Partilha das críticas de que os fundos europeus são utilizados muitas vezes para substituir financiamento público que deveria ser assegurado pelos Orçamentos de Estado, em vez de financiar projetos verdadeiramente estruturantes?Há verbas que, com um estender do prazo, poderiam ser claramente concretizadas e que teriam um interesse estratégico para o país maior, não obrigando a que esses projetos fossem financiados com outras fontes de financiamento.
Não é uma questão de opinião subjetiva. Os números e os factos falam por si. Se recuarmos alguns anos, havia bolsas do Instituto de Emprego e Formação Profissional a serem pagos por fundos comunitários e outras formas de financiamento de atividades correntes do Estado, a vários níveis. Muitas vezes até usando recursos que deveriam estar alocados às regiões, para poder financiar esse tipo de responsabilidade.
Infelizmente, o Estado também tem tido essa propensão e de uma forma transversal a diferentes governos, sempre que exista essa oportunidade, de se financiar ele próprio naquilo que é a sua atividade e a sua gestão corrente com verbas que deveriam ser dirigidas para outras prioridades.
Devia haver coragem de apostar em meia dúzia de projetos estruturantes em vez de repartir os fundos europeus por muitos pequenos projetos que provavelmente não terão o mesmo efeito transformador do país?Aí levantam-se duas questões. A primeira das quais é não podemos descurar a coesão territorial e a coesão social do país. Se pegarmos em alguns projetos bandeira que vão ter mais impacto, em zonas com mais potencial, que já têm um maior retorno antecipado, seguramente vamos estar a descurar muitas outras regiões que também carecem de investimento, de apoio, para poderem ter massa crítica, para atrair e reter pessoas e poderem desenvolver de uma forma socialmente justa a sua atividade.
E aí, das duas, uma: ou encontramos outros mecanismos de financiamento que são dirigidos para esse tipo de territórios, ou tem de ser o próprio Orçamento de Estado, que muitas vezes não o tem feito, a assumir essa responsabilidade.
Agora, o que me parece também é que, muitas vezes, se tem olhado para estes projetos tendo em conta apenas aquilo que são as gavetas tradicionais dos financiamentos europeus, não percebendo quais é que são outras áreas que poderiam ser benéficas para o desenvolvimento do território.
Por exemplo, voltando à discussão do novo quadro das perspetivas financeiras. Uma das iniciativas da União Europeia é a criação do Fundo da Competitividade. Teoricamente, não será também alocado a nenhuma linha que seja especialmente dirigida às regiões, porque se considera, a nível europeu, como se calhar em muitos Estados-membros, que essa não é uma responsabilidade dos territórios.
Ora, o que temos conseguido demonstrar, e Braga é um excelente exemplo e temos várias outras cidades a nível nacional que o têm feito, é que com investimentos reprodutivos no território, com a capacidade de atração de empresas e de fixação de talento, mudamos a realidade dos territórios. Braga, há 12 anos, nem nos 15 primeiros conselhos mais exportadores do país aparecia.
Hoje está a disputar com Famalicão o terceiro lugar. Temos criado três mil postos de trabalho por ano. Temos criado condições para atrair muitos centros de investigação e desenvolvimento. Fomos recentemente considerados a Rising Innovative City. Portanto, há essa massa crítica, também a nível local, e essa poderia ser uma das áreas em que, com financiamentos comunitários, com políticas orientadas por parte dos Estados-membros, também as regiões poderiam ter outro potencial de desenvolvimento.
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