Free Bird em Elizabethtown (Músicas em Filmes, 1)

Ele há músicas incríveis. Músicas de que muito gosto, músicas que conheci e aprendi a gostar simplesmente ouvindo-as, usando apenas o córtex auditivo.
Mas, de forma rara e fortuita, essas músicas existem também em cenas de filmes, ocasiões em que a associação da música à cena do filme é de tal forma extraordinária que torna impossível voltar a ouvir e a encarar a música da forma prévia, unicamente auditiva. A música passa a interligar-se inextricavelmente à cena do filme.
Uma dessas músicas é Free Bird, dos Lynyrd Skynyrd. E a cena pertence ao filme Elizabethtown.
Vou explicar.
No início do filme Elizabethtown, um jovem executivo de uma grande empresa toma uma decisão catastrófica que causa um prejuízo tão enorme à empresa que a vai obrigar a uma gigantesca reestruturação, com despedimentos e encerramentos múltiplos. Destruído pela catástrofe que causou e não vendo saída para a sua vergonha e vida, o jovem prepara-se para se suicidar mas, no momento exacto em que o vai fazer, o seu telefone toca: é a sua irmã a informá-lo de que o seu pai, que vivia divorciado da sua mãe, numa pequena vila em que nascera, no interior profundo dos EUA, tinha morrido. Obrigado a ter que tratar das burocracias relacionadas com a morte do pai, contrariado e relutante, o jovem decide adiar o suicídio para depois dessa obrigação, e parte para essa vila perdida.
Entre as várias peripécias subsequentes, onde verifica que a catástrofe que lhe tinha acontecido não tem qualquer relevância na pequena vila perdida, o jovem encontra um primo seu, que não via há muitos anos e que sempre se mantivera na pequena vila. O auge de glória do primo, já trintão, tinha sido a ocasião em que, com a sua banda, tinha tocado como banda de abertura do concerto da banda de abertura da banda de abertura da banda de abertura dos Lynyrd Skynyrd.
Entretanto, é organizado um memorial em honra do pai do jovem. Tipicamente americano e um pouco estranho e incompreensível na nossa cultura lusitana, trata-se de um evento de homenagem ao defunto, em que todos os familiares, amigos e até simples conhecidos (e, no filme, acaba por ser a vila quase toda), se apresentam muito bem vestidos, como para um casamento, e o salão de festas da vila é preparado com mesas e enfeites.
No salão há um palco, onde se encontra uma enorme fotografia do pai do jovem, e onde várias pessoas falam sobre a pessoa que ele tinha sido. Depois, quase no final da cerimónia, sobe ao palco a velha banda do tal primo, para, em homenagem, tocarem a música Free Bird, dos Lynyrd Skynyrd. Como clímax, eles tinham preparado um grande pássaro branco de papel, que iria deslizar num cabo ao longo do salão, no auge do solo de guitarra final da música.
Tudo começa por correr bem e o público vibra e canta e dança e ri ao som da música. Só que, na altura em que a enorme ave de papel branco se prepara para deslizar pelos ares, um foco de luz sobre ela colocado, excessivamente perto, tinha já iniciado uma pequena combustão nas suas penas. Assim, ao deslizar, surgem chamas no pássaro, que se transmitem a uma enorme faixa sobre o palco. O público passa do riso alegre à surpresa estupefacta e depois ao medo e pânico e gritos. A ave cai em chamas no chão no meio do salão. As pessoas correm para as saídas. Os aspersores de segurança do tecto começam a jorrar água.
Mas, durante tudo isto, a musica não pára. O primo e o resto da banda, reunidos muitos anos depois daquela sua coroa de glória, embrenhados na adrenalina e loucura daquele solo final épico da Free Bird, continuam sempre a tocar, no meio das chamas, dos gritos, do pânico e depois da água que jorra dos aspersores do tecto.
É uma cena espectacular.
Nunca mais consegui ouvir a música Free Bird apenas usando o meu córtex auditivo, porque imediatamente os circuitos da minha memória ligam outras áreas do meu cérebro, e volto a ver a cena do filme Elizabethtown, com o pássaro em chamas no salão em pânico e em fuga e com água e os músicos frenéticos sempre a tocar…
Vejam a cena, com o volume no máximo.
Não se vão arrepender. E aquela música nunca mais será a mesma.
observador