Comunistas liberais

O Partido Comunista Português é o mais antigo dos partidos portugueses vivo. É um partido centenário que nasceu na sequência da revolução bolchevique, tendo atravessado, a segunda metade da primeira república e a ditadura do Estado Novo – esta última na clandestinidade – e teve o seu apogeu durante o designado Período Revolucionário em Curso, que durou entre o 25 de abril de 1974 (queda da ditadura de direita) e o 25 de novembro de 1975 (queda das pretensões da extrema esquerda de instituir uma ditadura popular no nosso país.). Durante aquele período, chegou mesmo a liderar vários governos provisórios, para pasmo de muitos, por Vasco Gonçalves, governos de má memória para a generalidade dos portugueses, caracterizados pela radicalização, nacionalizações generalizadas, reforma agrária (expropriações), descolonização acelerada e mal preparada. Todavia, na primeira eleição livre, a constituinte de 25 de abril de 1975, não foi além dos 12.5%, acabando por deixar a liderança do governo em setembro do mesmo ano.
O PCP é, ainda, destacadamente, o terceiro partido autárquico, liderando várias câmaras municipais, sobretudo na margem sul do rio Tejo e Alentejo. É, no entanto, insofismável que o Partido Comunista vive hoje um período de decadência e de progressiva erosão eleitoral. Se nos anos 1980 chegou a ter 20% dos votos em legislativas, em 2025 não foi além dos 3%. Se nos anos 1980 chegou a liderar 55 autarquias, hoje lidera apenas 19. As razões do retrocesso são muitas e marcadamente estruturais, e vão desde a perda do seu grande ideólogo, fundador e líder Álvaro Cunhal, até à sua ortodoxia, passando por uma crescente literacia política dos portugueses e pelo falhanço de todos os grandes projetos comunistas e socialistas pelo mundo, desde a União Soviética e Europa Ocidental, passando por Cuba, Coreia do Norte e Venezuela.
O Partido Comunista é, numa certa medida, “o último dos moicanos” quase não tendo paralelo na Europa do século XXI, e não obstante o seu parco peso eleitoral, continua a ter uma enorme capacidade de perturbação da vida social e económica, nomeadamente através daquele que é o seu último grande esteio – os sindicatos.
Todavia, o extremar de posições sindicais, com particular influência sobre os setores públicos, da Educação, Saúde e Transportes Públicos, e muito particularmente na ferrovia, não só é largamente inconsequente do ponto de vista das suas lutas, como acaba por criar nos portugueses, uma pulsão liberal que vem, irónica e paradoxalmente contribuir fortemente para a progressiva destruição do serviço público que tanto clamam defender, propiciando um clima favorável ao desmantelamento dos mesmos, fazendo assim mais pelo liberalismo que qualquer liberal.
Os Portugueses podem até, em tese, preferir o serviço público, mas quando reiteradamente estes não respondem, a tentação de optar por outros caminhos é um corolário.
Quando o povo vê a privatização dos autocarros de longo curso a resultar em mais oferta e preços mais baixos e a concessão da ferrovia suburbana Lisboa-Setúbal sempre a circular, com comboios limpos, a horas e quase sem greves (há 25 anos), e comparam com o serviço prestado pela CP, com atrasos e greves constantes e sem fim, que concluirão os eleitores?
Quando mais de 4 milhões já reconhecem que o SNS não dá a resposta necessária e por isso subscrevem seguros privados de saúde, que concluirão os eleitores?
Quando, cada vez mais, os filhos da classe média estudam em colégios privados, ao contrário do que acontecia há 40 anos, e sempre que há greves são no setor público, os meninos e as famílias afetadas são invariavelmente os que têm menos recursos, que concluirão os eleitores?
O que dirão os trabalhadores do setor privado que por profissões idênticas, sobretudo as menos qualificadas, recebem menos do que nos feudos públicos, como a CP, perante greves destes trabalhadores com melhores condições laborais e sem precariedade laboral e que tanto os prejudicam?
Para que serve, afinal, o PCP? Serviu para votar contra todos os orçamentos em 51 anos de democracia (exceção para 5 orçamentos, durante o período da “geringonça”), votar contra todas as revisões constitucionais feitas até hoje, votar contra todos os acordos de concertação social entre trabalhadores, patrões e governos, e para, através do seu “braço armado” sindical CGTP, bloquear o país com greves, que prejudicam ainda mais o acesso à saúde (sobretudo dos menos favorecidos), prejudicam ainda mais as aprendizagens, a vida familiar e laboral dos pais (sobretudo os menos favorecidos), e bloqueiam o transporte ferroviário, prejudicando quem da ferrovia necessita para se deslocar (sobretudo os menos favorecidos).
Não querendo ser injusto, o PCP tem duas grandes virtudes que o distinguem das demais forças políticas, uma coerência de convicções extraordinária, imune à opinião pública e publicada, que lhes permite defender uma posição pró-russa na guerra ucraniana, e uma capacidade de institucionalizar o protesto que foi importante em vários momentos da nossa vida democrática. No entanto, estas virtudes são muito parcas, e hoje o PCP não é mais do que nunca uma força de bloqueio, que não faz (e ainda bem!), nem deixa fazer (e muito mal). Talvez por isso, a sua decadência pareça inexorável.
Nos últimos anos, desde o fim da famigerada “geringonça” que o PCP foi reativando progressivamente o seu “braço armado” sindical (CGTP), cuja atividade foi – como aliás é característico quando o centro-direita chega ao poder – reforçada no último ano.
Foi com manifesta perplexidade que assistimos ao que se passou nos últimos 2 meses, nos quais o governo estava em gestão (com o parlamento dissolvido) e ainda assim houve greves com grande impacto social e económico, com destaque para a CP. Estariam a pressionar um governo que já não existia ou estariam a pressionar um governo que ainda não existia? É anedótico.
Finalmente, chegamos à tão estoica quanto ignóbil rejeição do programa do governo apresentada nos últimos dias, uma rejeição de um governo que não existe ainda. É sabido que o PCP não é propriamente um paladino da democracia, mas caramba, rejeitar um governo – que ainda não existe, reitero – de uma coligação que acaba de ser reforçada eleitoralmente, cuja votação ficou bem acima do segundo partido mais votado, e quando o seu próprio partido tem 3 de 230 deputados, é algo de que só o PCP seria capaz. A rejeição da legitimidade eleitoral é notória, o que não só é antidemocrático, como, no caso vertente, é sobejamente inconsequente, ou seja, inútil.
O PCP tem todo o direito a defender uma organização social completamente diferente da existente, todavia, e rejeitando o povo reiteradamente a sua opção há 50 anos, é hora de perceber o mundo em que vivemos e adaptar-se à realidade. Doutro modo, o seu destino será o mesmo de todos os demais partidos comunistas da Europa, uns meros parágrafos nos livros de história.
Sou defensor de manter certos serviços da esfera do Estado, mas constato que quanto mais os portugueses se deparam com um país que não funciona, com greves (muitíssimo) frequentes, recorrentes e inconsequentes, mais cresce a revolta contra os serviços públicos e a aceitação da ideia de concessões ou privatizações. Obviamente.
Questiono-me, se o PCP é efetivamente um inefável defensor dos serviços públicos ou se tem uma agenda liberal oculta de promoção da progressiva alienação dos mesmos da esfera estatal. É que por mérito ou incompetência, a sua ação sindical que bloqueia o país é mais eficaz a promover o liberalismo económico e as privatizações do que qualquer liberal.
observador